A Arte de Amar, de Bandeira e Saramago

Da Revista Cenarium

PORTUGAL – Gosto do conceito de amor entre duas pessoas sacramentado num dos meus poemas preferidos de Manuel Bandeira chamado “A arte de amar”. Não por acaso, a ponta superior direita da página 202 do meu velho e já desgastado exemplar de “Estrela da vida inteira”, além de permanentemente dobrada, ainda trás um desses marcadores colantes na cor vermelha. Isso encurta o caminho para o meu encontro sempre recorrente com esses versos do Bandeira, de palavras tão corriqueiras, mas carregadas de sentidos tão impactantes:

                “Se queres a felicidade de amar, esquece a tua alma.
                A alma é que estraga o amor.
                Só em Deus ela pode encontrar satisfação,
                Não noutra alma.
                Só em Deus – ou fora do mundo.
                As almas são incomunicáveis.
                Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
                Porque os corpos se entendem, mas as almas não”.

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E por que, mais uma vez, fui direto e sem escala à página 202 para me embalar na arte de amar de Manuel Bandeira? Estava absorto no excelente texto da biografia de José Saramago – Rota de vida – , organizada por Joaquim Vieira, e me dei conta de que, antes de se enveredar pela ficção, o romancista português publicou na década de sessenta uma coletânea de poemas sob o título “Os poemas impossíveis”, livro por sinal muito bem recebido pela crítica à época, segundo seu biógrafo.

Mas a coisa não termina por aí. Em meio a considerações sobre o livro, Joaquim Vieira compartilha de Saramago exatamente um poema de nome “A arte de amar”:

                “Metidos nesta pele que nos refuta,
                Dois somos, o mesmo que inimigos.
                Grande coisa, afinal, é o suor
                (Assim já o diziam os antigos):
                Sem ele, a vida não seria luta.
                Nem o amor amor”.

Ora, uma leitura remete sempre à vida e a outras leituras! Inevitável foi, portanto, correr direto para a página 202 e construir a ponte que sustenta a sublime materialidade do amor entre os versos de Bandeira, escritos no final da década de 40, e os versos de Saramago, escritos em meados da década de 60. Afinal, já que os corpos se entendem, mas as almas não, nada mais natural do que aceitar que sem o suor não haveria luta, muitos menos amor.

(*) Linguista e escritor

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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