A biologia é fluida e desafia visões binárias e machistas


Por: Lucas Ferrante*

18 de novembro de 2025

É comum ouvirmos declarações como “Deus fez apenas machos e fêmeas”, usadas de forma equivocada para justificar preconceitos ou negar direitos. No entanto, a própria biologia — frequentemente invocada por discursos conservadores — revela um panorama muito mais diverso, complexo e fascinante. A natureza não se limita a binarismos rígidos: ela é marcada pela adaptação, pela transformação constante e por respostas surpreendentes aos desafios do ambiente. É justamente nessa capacidade de mudança que reside sua genialidade.

Há mais de 15 anos, em uma das minhas linhas de pesquisa, venho investigando a biologia, ecologia e comportamento de anfíbios — organismos-chave para o equilíbrio ecológico. Sensíveis a perturbações ambientais, esses animais atuam como importantes bioindicadores e agentes naturais de controle biológico, revelando alterações nos ecossistemas, como contaminações por poluentes, perda de vegetação e impactos climáticos. Em um estudo desenvolvido na Fazenda Experimental da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e publicado no periódico científico Ethology, Ecology and Evolution, investigamos as estratégias comportamentais de sapos da Amazônia Central para escapar de predadores. Durante essa pesquisa, observamos um fenômeno notável em populações da espécie Rhinella marina, o conhecido sapo cururu: na ausência de fêmeas, alguns machos passaram por alterações fisiológicas e morfológicas, desenvolvendo características femininas e tornando-se fêmeas funcionais. Essa plasticidade sexual, registrada em populações com predominância de machos, permitia aumentar o número de fêmeas e garantir a continuidade da reprodução — uma adaptação evolutiva impressionante que evidencia a flexibilidade biológica desses organismos diante de pressões ambientais.

Esse fenômeno, no entanto, não é isolado. Diversas espécies apresentam mecanismos naturais de mudança de sexo ou estratégias reprodutivas que independem de um parceiro do sexo oposto. A partenogênese, por exemplo, é uma forma de reprodução assexuada documentada em lagartos e até em aves como os condores, permitindo que fêmeas gerem descendentes sem fecundação — ou seja, sem a participação de machos. Trata-se de uma estratégia evolutiva altamente eficiente em contextos de baixa densidade populacional, nos quais o encontro com parceiros reprodutivos é limitado.

Em outro estudo recente, publicado no periódico Ecology, documentei um comportamento inédito entre anfíbios: fêmeas da espécie Callimedusa tomopterna — a perereca-listrada-da-folha — foram observadas tomando a iniciativa na atração dos machos, invertendo o padrão clássico em que apenas os machos cortejam as fêmeas. Elas escolhiam folhas específicas situadas sobre poças d’água permanentes, posicionavam-se de forma estratégica, arqueando o corpo e expondo o abdômen distendido — um sinal visual claro de ovulação. O estudo também revelou a ausência de comportamentos atrativos por parte dos machos, indicando que a iniciativa da fêmea foi decisiva no processo de escolha do parceiro. Esse comportamento não apenas representa uma nova descoberta sobre a ecologia reprodutiva de anfíbios, como também quebra estereótipos de gênero profundamente arraigados na sociedade. Demonstra que, ao contrário do que muitos pensam, fêmeas podem sim tomar a iniciativa no processo reprodutivo — e isso é natural.

Foto da espécie Callimedusa tomopterna tirada na Fazenda Experimental da Ufam (Lucas Ferrante)

A complexidade da biologia do sexo também se aplica aos seres humanos. Em um artigo publicado na revista Nature, Claire Ainsworth reúne uma série de estudos que demonstram como a ideia de que existem apenas dois sexos biológicos é uma simplificação excessiva, que ignora não apenas aspectos psicológicos, mas também evidências biológicas. Casos de mosaicismo genético, condições intersexo e quimerismo revelam que muitas pessoas não se encaixam perfeitamente nas categorias “masculino” ou “feminino”. Há, por exemplo, indivíduos com cariótipo XX que desenvolvem testículos, ou com cariótipo XY que desenvolvem ovários — e até registros de pessoas com características masculinas e femininas em diferentes partes do corpo. A biologia moderna reconhece que o sexo é mais bem compreendido como um espectro, moldado por uma complexa interação entre genes, hormônios e fatores ambientais.

Além disso, estudos de associação genômica, como o publicado na revista Scientific Reports, indicam que características como a orientação sexual masculina possuem uma base genética multifatorial. Esses achados reforçam que comportamentos e identidades de gênero e orientação sexual não são escolhas individuais ou desvios de conduta, mas sim expressões naturais da diversidade biológica humana. Em consonância com essa perspectiva, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não considera a homossexualidade nem a transexualidade como doenças. A homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças em 1990, e, em 2019, a transexualidade também deixou de ser classificada como transtorno mental. Ambos os marcos refletem o entendimento científico de que a sexualidade é plural e determinada por uma complexa interação entre fatores genéticos, hormonais, psicológicos e sociais — e não deve, portanto, ser patologizada.

Portanto, a ideia de uma biologia estritamente binária é não apenas cientificamente imprecisa, mas também superada. A própria natureza, em sua complexidade, revela que a diversidade, a adaptação e a fluidez são regras — não exceções. Na natureza, não há um único caminho. Há sapos que mudam de sexo para preservar o equilíbrio de sua espécie, fêmeas que tomam a iniciativa na reprodução, e répteis que seguem adiante mesmo sem parceiros. A vida sempre encontra maneiras de florescer — diversas, inesperadas, singulares. E o mesmo vale para nós, seres humanos. As variações genéticas, hormonais, morfológicas e comportamentais que existem entre as pessoas não são erros ou desvios, mas expressões legítimas da riqueza da vida. Para quem já se sentiu fora do padrão, é importante saber: você não está só, e muito menos fora da biologia. A diversidade não é algo a ser corrigido — é algo a ser acolhido. É nela que reside a força da natureza, e é com ela que construímos um mundo mais justo, mais bonito e verdadeiramente humano.

Ser diferente é natural! A biologia não delimita fronteiras rígidas — ela expande possibilidades. Reconhecer essa diversidade é fundamental não apenas para o progresso científico, mas para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e conectada à verdadeira complexidade da vida.

(*)Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de Covid-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

O que você achou deste conteúdo?

VOLTAR PARA O TOPO
Visão Geral de Privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.