A desonrosa e esdrúxula tese da legítima defesa da honra no feminicídio

A tese da legítima defesa da honra remete ao Brasil Colonial, onde os homens podiam tirar a vida de suas companheiras com o argumento de que estavam cometendo um assassinato em nome de sua honra. É uma justificativa cruel e descabida para que homens se sentissem no direito, e com o amparo legal, para tirar a vida de suas esposas ou namoradas que o traíssem. É o crime passional sendo normalizado e legitimado pelo Estado.

É a figura feminina sendo vista como propriedade, como objeto. É a mulher sendo colocada abaixo do direito à vida previsto na Constituição.

O ato de matar a esposa infiel transformou-se historicamente em verdadeiro mérito do marido. O absurdo sendo normalizado. É a vingança masculina sendo vista como Lei. É a honra masculina sendo legitimada como maior valor do que a própria vida da mulher.

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Essa tese foi utilizada por muitos anos, e até hoje, como estratégia jurídica para legitimar assassinatos de homens contra suas companheiras.

Assim observamos a mulher não sendo vista nem como cidadã e nem como ser humano. Por meio dos movimentos feministas essa tese caiu em desuso, mas ainda assim poderia ser usada.

Como esquecer o caso do assassinato da Leila Diniz? Até hoje esse lastimável episódio é lembrado. O júri da época absolveu o seu assassino em nome da legítima defesa da honra.

Recentemente o STF decidiu que é inconstitucional a tese da legítima defesa da honra. Isso significa que o uso desse argumento será proibido em casos envolvendo feminicídios. A defesa não poderá mais usar essa estratagema tão cruel e macabra para justificar e perpetuar a violência doméstica e o feminicídio.

É uma decisão que deveríamos estar comemorando, mas a verdade é que tal fato nem devia ser pauta no Supremo. Quero dizer, em pleno século vinte e um a nossa Justiça ainda decide sobre algo tão arcaico, algo que já deveria a muito tempo não fazer mais parte das fases dos processos penais, afinal fere os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

É surreal saber que essa ferramenta tão imoral ainda poderia ser utilizada nos tribunais, sendo o nosso país um dos piores para uma mulher viver. Somos campeões de crimes de gênero, feminicídios e violência doméstica. Ser mulher nesse País é ter um alvo nas costas. É algo muito covarde para se comemorar, nem deveria mais existir.

Vivemos numa sociedade patriarcalista e misógina, usar algo subjetivo como a traição conjugal como justificativa para tirar a vida de uma mulher é mais que imoral, é mais que surreal, é mais que inconstitucional, é um argumento descabido que nem consigo conceituar de tão absurdo que é. É inadmissível que um homem se sinta legitimado a agredir uma mulher e tirar sua vida em nome de uma “honra”.

Pois é, mas essa ferramenta horrenda, ainda era usada até pouco tempo. E isso só mostra o quanto somos um país atrasado e misógino. Isso reflete a nossa sociedade. Essa tese, até décadas atrás, no Brasil, era o que mais absolvia os homens violentos que matavam suas esposas, companheiras, namoradas.

Isso só mostra como as mulheres são tratadas neste País e dentro do ordenamento jurídico. Até mesmo quando uma mulher é assassinada a culpa ainda cai sobre ela, tentam responsabilizar a vítima pelo crime. Isso é odioso, cruel e desumano.

Somos o quinto País em taxa de feminicídio no mundo, e não estamos no Médio Oriente e nem temos um Alcorão sobre nossas mesas. Mulheres são mortas só por serem mulheres, só pelo seu gênero, morrem por dizerem “não”, por saírem de um relacionamento, por usarem roupas curtas, por simplesmente serem do sexo feminino.

O feminicida não pode ser acolhido pela sociedade e muito menos pela Justiça. Essa tese da legítima defesa da honra é extremamente sexista e dava amparo legal a crimes violentos contra mulheres.

Saber que tal fato ainda era legal e usado nos tribunais é revoltante. É sabido que existem poucos tribunais em que essa tese absurda era acolhida pelo júri popular, mas saber que ainda era legal e constitucional só mostra o quanto estamos atrasados como sociedade na luta pela igualdade de gênero e pelos direitos das mulheres.

Não consigo como mulher, feminista e militante comemorar tal decisão. Só posso dizer: “antes tarde do que nunca”.

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(*)Regiane Pimentel é bacharel em direito, ativista social e feminista amazônida.

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