A falsa transição energética: a mentira verde que o Brasil levará à COP
Por: Lucas Ferrante
21 de novembro de 2025Por: Lucas Ferrante*
Enquanto o mundo se reúne para discutir o futuro climático na COP, o Brasil se prepara para apresentar uma narrativa cuidadosamente construída — uma ficção verde que encobre a continuidade de um modelo baseado na destruição ambiental e na expansão de combustíveis fósseis. Sob o discurso da transição energética e do “crescimento sustentável”, o país segue promovendo o desmonte de políticas ambientais e a abertura de novas frentes de exploração na Amazônia. O que o governo pretende vender ao mundo como transição energética é, na realidade, uma maquiagem verde que oculta uma guinada regressiva e perigosa.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu alcançar desmatamento zero até 2030 e neutralidade climática até 2050, anunciou poucos dias após seu discurso na COP28 o asfaltamento da rodovia Amazônica BR-319 — estrada que liga Manaus a Porto Velho, conectando o centro da Amazônia ao arco do desmatamento — e, em seguida, o leilão de 602 blocos de exploração de petróleo, sendo 21 deles na Amazônia, nove localizados na área de influência da BR-319 e incluindo áreas com sobreposição em terras indígenas, um dos últimos grandes blocos de floresta contínua do planeta. Essas concessões ampliam o risco de degradação em regiões que até recentemente permaneciam intactas, estimulando a migração de frentes pecuaristas, madeireiras e grupos privilegiados em detrimento dos povos tradicionais da região. Desde 2023, o número de novas concessões de petróleo e gás na Amazônia brasileira vem crescendo em ritmo alarmante, enquanto o país insiste em se apresentar internacionalmente como exemplo de liderança climática.
Nos últimos anos, diversos estudos científicos apontaram que a Amazônia está se aproximando perigosamente de um ponto de não retorno, efeito causado tanto pelo avanço do desmatamento como o agravamento da crise climática. Dessa forma, soa profundamente contraditório abrir estradas na Amazônia para facilitar o acesso a novos blocos de exploração de petróleo. As consequências vão muito além da perda ambiental imediata — são também econômicas e estruturais. Em publicação na revista Science, foi demonstrado que a degradação da floresta e a consequente interrupção dos chamados “rios voadores” podem gerar prejuízos que excedem até 5 trilhões de reais por ano para regiões como o Sul e o Sudeste do Brasil. Essa perda de serviços ecossistêmicos compromete a regularidade das chuvas e ameaça diretamente o abastecimento hídrico dos maiores centros urbanos da América Latina, podendo inclusive levar ao colapso do Sistema Cantareira, responsável pelo fornecimento de água para a Grande São Paulo.

Os discursos oficiais sobre “bioeconomia” e “transição justa” soam vazios diante de um Estado que segue financiando a expansão de cadeias produtivas associadas à pecuária, ao petróleo e ao agronegócio exportador. O governo vem transformando o discurso climático em ferramenta de relações públicas: fala em “Amazônia verde” enquanto redireciona recursos de proteção ambiental para obras e projetos de infraestrutura que impulsionam a destruição. Esse duplo discurso é o coração da mentira que o Brasil levará à COP — a ideia de que é possível liderar a luta climática enquanto se fortalece a dependência de combustíveis fósseis e se desmontam os mecanismos de comando e controle ambiental.
A retórica de que “o petróleo vai financiar a transição energética” soa eloquente — mas revela uma contradição estruturante: ao insistir que a extração deve seguir até a “última gota” e postergar o protagonismo das renováveis para depois de 2035, a Petrobras está enviando mensagens ao mercado e aos decisores de que os investimentos ainda devem priorizar o negócio fóssil dominante. Essa sinalização retarda o giro necessário de capital e logística, favorecendo a perpetuação de usinas térmicas, combustíveis fósseis e infraestrutura de suporte (oleodutos, refinarias e terminais) em detrimento da expansão ambiciosa de solar, eólica, hidrogênio verde e redes elétricas inteligentes. Nesse modelo, o desenvolvimento gradual das renováveis se torna mera coadjuvante, enquanto o petróleo continua a ditar o ritmo da energia nacional. Essa dicotomia entre discurso climático e prática de fomento aos fósseis mina a credibilidade de um programa de transição e reforça a lógica de dependência que o mundo já tenta romper.
O discurso de “transição justa e inclusiva” torna-se frágil quando confrontado com a agenda concreta da empresa estatal, que prioriza novas fronteiras de exploração — como Margem Equatorial e Foz do Amazonas — sob o argumento de autopreservação estratégica do país, mascarando riscos socioambientais e pressões territoriais como já apontado por especialistas em periódicos científicos. Sustentar que é imperioso extrair mais petróleo para evitar que o Brasil importe é uma narrativa de falso dilema: ela omite alternativas — como a demanda gerida, a eficiência energética e a aceleração inteligente das fontes renováveis — que permitiriam reduzir a dependência fóssil. A escolha por explorar cada gota não é neutra: legitima o desmatamento, a degradação costeira, o aumento de risco climático e a captura política do setor petróleo-gás. Assim, ao mesmo tempo que o discurso sugere liderança na transição, a prática decodifica que a estatal tampouco abre espaço para virar um agente de virada — permanece ministério simbólico do petróleo, não catalisador da transição que o clima exige.
Enquanto o mundo discute a descarbonização, o Brasil prepara o terreno para repetir os erros do passado. Ao usar o vocabulário da sustentabilidade para justificar a exploração de petróleo e a destruição ambiental, o país trai não apenas seus compromissos internacionais, mas o próprio futuro climático da humanidade. Na COP, o Brasil vai subir ao palco como se fosse exemplo de transição energética — mas por trás do discurso, o que se esconde é a manutenção de um modelo que queima floresta, fere direitos indígenas e transforma a Amazônia em zona de sacrifício.
A transição energética brasileira está em cheque. E o mundo precisa enxergar o que há por trás do verniz verde que o Brasil tentará vender: não um projeto de futuro, mas a repetição de uma mentira perigosa — a de que é possível salvar o clima destruindo a Amazônia.
(*) Lucas Ferrante é biólogo formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), com Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois periódicos científicos mais prestigiados do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com vínculo ao Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças do Clima (Cbioclima)e aoInstituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (QualiGov).