‘A floresta é como nossa mãe, como poderíamos maltratá-la?’: lideranças amazônicas criticam discurso de Bolsonaro

Em mais um ataque descabido, Bolsonaro atribui aos povos da Amazônia, a culpa pelas queimadas na região (Reprodução/Internet)

Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – O mundo amazônico recebeu com indignação a fala do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante discurso na Organização das Nações Unidas (ONU). Na fala, o presidente minimizou o desmatamento e as queimadas na Amazônia e no Pantanal. Atribuiu os focos de incêndio ao ‘costume’ que os índios e os caboclos da região tem de queimar para fazer roçado.

A indígena Sandy Sateré, membro do grupo criado por Greta Thunberg, o Friday For Future, classificou a acusação do presidente do Brasil de ridícula. “É uma acusação ridícula, feita por quem desconhece a realidade. Nós, indígenas, temos a floresta como nossa mãe. Como poderíamos maltratá-la? Ela é nossa mãe!”, protestou.

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Habitantes do maior bioma florestal do mundo, os caboclos sabem como extrair da floresta, sem destruí-la (Reprodução/Internet)

A jovem líder continuou. “Não somos nós a queimar a floresta, pelo contrário, nós a protegemos como nossos antepassados a protegeram e vamos continuar lutando por ela. E nós fazemos isso sabe por quê? Porque queremos deixá-la para todos. Para vocês e para nós”, ponderou a jovem Sateré.

O líder indígena e presidente da Associação dos Kapí (capitão na língua Sateré-Mawé) e Lideranças Tradicionais Sateré-Mawé do Rio Andirá, do município de Maués (distante 320 quilômetros de Manaus), Josias Sateré, fez uma análise das palavras do presidente no discurso de hoje na ONU.

Buscar culpados

“A história se repete. A política genocida desse governo anti-indígena, que busca culpar os povos indígenas, é característica da falta de compromisso com o Brasil. O discurso dele mostra que não existe diálogo com os verdadeiros guardiões da floresta. Basta observar: onde não existem mais povos indígenas, tudo está destruído”, declarou Josias.

Em sua avaliação, o discurso colonial ainda está vivo. “A história da colonização reverbera no discurso do Bolsonaro que mais uma vez marginaliza os povos indígenas. Em que mundo esse homem vive? Não podemos ser responsabilizados pelo projeto de invasão de terras indígenas que o seu governo incentiva”, refutou.

Os povos da região amazônica usam todos os recursos que a selva e o rio dispõem para viver em sintonia com o mundo verde ao seu redor (Reprodução/Internet)

Josias chamou para os indígenas a verdadeira missão de proteger a Amazônia. “Nos Sateré-Mawé do Baixo Amazonas, assim como outros povos indígenas do Brasil, somos os verdadeiros guardiões da floresta e lutamos pela vida”, declarou o líder indígena.

Quilombolas se posicionam

Ítalo Ferreira, mestre e doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e afrodescendente da região do Itaborai, no Amazonas, reagiu às declarações do presidente com espanto e indignação. À REVISTA CENARIUM, ele declarou:

“Recentemente o presidente autorizou o plantio de cana-de-açúcar no Pantanal e na Amazônia e com isso percebe-se nitidamente uma política entreguista do patrimônio biológico (capital biológico) do Brasil para empresas estrangeiras”, informou a acadêmico.

De acordo com ele, as queimadas são decorrentes da forte presença de fazendeiros em áreas de povos originários e áreas quilombolas. “No rio Andirá isso ocorre desde os anos 1970 e 1980”, observou.

“Os povos tradicionais perderam seus espaços de antigas áreas agricultáveis para o agronegócio. Tanto que os pleitos de titulação de terras remontam décadas junto ao Incra, nunca são deferidos”, atestou.

Milenares em sua terra, os povos indígenas da Amazônia convivem com a selva há muito tempo sem destruí-la. O processo de degradação começou com a chegada do branco (Reprodução/NationalGeographic)

Quem desmata?

Ítalo faz a seguinte pergunta: “Há quanto tempo os povos tradicionais habitam as florestas do Brasil com destaque para a Amazônia e as mantiveram em pé? Por mais de um milênio até a invasão de 1500”, indagou.

“E há quanto tempo o agronegócio está na região e em que transformou esse espaço biológico e social? Dos anos 1970, até o tempo presente, a realidade que se vê essa”, lamentou.

“Os saberes tradicionais estão aí representados por krenak, kopenawa, Raony, mas não são ouvidos pelo chefe branco imediato do chefe branco do Norte. O presidente é um colonizado e representa não os brasileiros, mas o Ocidente vencedor, o que é lamentável”, desabafou.

Caboclos marcam posição

“Se tem algum mérito a ser feito ao presidente Jair Bolsonaro, é sua capacidade de ignorância e estupidez como chefe de Estado”, declarou Dione Torquato, secretário-geral do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS), entidade que congrega quem vive da floresta sem a derrubar.

“Ausentar-se do compromisso público na condução para resolver uma situação extremamente grave para o País, o meio ambiente e seu povo, é um ato de covardia. Lamentável e vergonhoso foi esse pronunciamento do presidente na assembleia geral da ONU”, disparou o líder extrativista.

Com a ausência do Estado, grileiros, posseiros, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros vêm atacando a floresta com direito ao “dia do fogo” (Reprodução/Internet)

“O mundo sabe que um dos principais motivos dos aumentos do desmatamento e queimadas no Brasil é consequência da ausência do Estado. Colocar as populações como principais culpadas pelas queimadas no País e um atentado direto político do chefe de Estado contra sua própria população”, acusou.

Dione concluiu sua fala com mais críticas ao mandatário. “Ao invés de fazer pronunciamento estúpido e vazio, o presidente deveria reconhecer os desmontes do Estado, o enfraquecimento das instituições e o acirramento de conflitos motivados pelo incentivo do seu próprio governo”, bateu o extrativista.

Repercussão no Brasil

A líder indígena Sonia Guajajara publicou em seu twitter. “Bolsonaro mente mais uma vez na ONU. Nos envergonha com sua subserviência e culpa, mais uma vez, os povos indígenas por crimes que na verdade são cometidos por seus compadres, que agora se sentem empoderados a desmatar e queimar nossos biomas. Quem não te conhece, que te compre!”, disparou Guajajara.

Outra entidade que se posicionou firmemente foi o Greenpeace. No seu raio de ação, a ONG não economizou nas críticas. “Enquanto o País arde em chamas, em discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente Bolsonaro minimizou as queimadas e a grave crise ambiental, isolando ainda mais o Brasil do mundo”, comentou a entidade em sua conta no twitter.

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