‘A Funai acabou’, diz Sebastião Salgado, o artista da floresta

Em entrevista de Paris, ele alerta para o risco de indígenas isolados serem mortos pela Covid-19 e diz que Funai seria a principal responsável por não coibir invasões e se omitir sobre barreiras sanitárias (Sebastião Salgado)

Com informações do Infoglobo

RIO – Primeiro e único fotógrafo a realizar um trabalho nas aldeias Korubo de recente contato, no Vale do Javari, na Amazônia profunda, Sebastião Salgado se diz incrédulo com o drama vivido pela etnia. Como O GLOBO revelou, um surto de Covid-19 já atingiu mais de 70% destes 103 indígenas, que já viveram completamente isolados na floresta. Empenhado em frentes de apoio à causa indígena, dentro e fora do Brasil, desde o início da pandemia, Salgado responsabiliza a Fundação Nacional do Índio (Funai) pela contaminação avançada por Covid-19. De Paris, onde mora, ele falou sobre seu contato com os Korubo, em expedição da própria Funai, em 2017, e criticou duramente a política do governo atual para os povos originários. Mago das lentes que revelou a alma da Floresta Amazônia para o mundo, ele não acha demais falar em risco de “genocídio” porque a doença pode avançar para integrantes da etnia que vivem fechados no coração da mata.

Sua experiência com os Korubo indica que há temor sobre o surto que se abateu sobre eles?

Em primeiro lugar, eu quero dizer que sinto muito com essa notícia que você está me dando. Eu não sabia que o nível de contágio era tão alto, ou seja, praticamente, está todo mundo infectado. E é certo que os outros também se contaminarão já que é muito difícil pedir para eles tomarem distanciamento. São muito unidos, dormem juntos, caçam juntos, fazem tudo juntos. Agora, o temor é saber que eles têm contato com os isolados que estão ainda mais dentro do mato, isso sim preocupa. Esses korubo do Rio Ituí (região onde vivem) foram vacinados, tiveram a primeira e segunda doses, então, têm reação menos forte por conta da proteção da vacina. Os outros isolados não estão com proteção alguma. Sem contar que é muito difícil controlar e fazer os indígenas compreenderem que eles não podem ter contato uns com os outros. A Funai sabe de tudo isso, tinha a obrigação de protegê-los.

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Os korubo já estavam desprotegidos em 2017, quando você esteve lá?

Os korubo estão com um problema sério de alimentação, tanto de peixe quanto de caça, há muito tempo. A invasão no território deles agora é, praticamente, aberta. A quantidade de pessoas que vem de Atalaia do Norte (município onde fica o Vale do Javari) e invade a terra indígena para pesca e caça ilegal é imensa. De lá, são levadas muitas toneladas de peixes das lagoas. O Ituí é um bom rio de peixe, por isso eles vão pescar ali, porque não existe mais filtro e nem barreiras de proteção.

A instalação dessas barreiras foi determinada pelo STF . Você vê falhas do governo na proteção?

A Funai acabou. Ela é a responsável por essa contaminação. Se houver uma quantidade de mortes eu, pessoalmente, acho que tem que se imputar à política da Funai. Porque ela está ali para proteger. Ela sabe que eles são de recentíssimo contato, mesmo os que foram contatados em 2015, porque ainda é um contato extremamente recente. Eles não têm os anticorpos todos do grupo de indígenas que já convivem há mais tempo com as populações de fora das aldeias. Mas isso tudo faz parte desse comportamento negacionista da Funai. Vamos torcer para esse governo acabar e a gente renovar a esperança no órgão.

A Funai diz que mantém firme o plano de combate à Covid-19, nas aldeias, e o Ministério da Saúde garante que os protocolos são cumpridos…

O presidente da Funai (Marcelo Xavier) é responsável. (Procurado, o órgão não se pronunciou). Em última instância, por saber que esses indígenas não têm anticorpos, por estar ciente que uma parte deles ainda tem contato com os outros isolados na floresta e de que eles (funcionários do órgão) são os responsáveis. Eles são responsáveis pela proteção dos indígenas e esta proteção não está existindo. Vai ser necessário um processo sério para apurar essa falha, pois a Funai não está exercendo sua obrigação. A Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) está fazendo o trabalho dela. Ela foi lá e vacinou. Ela não tem obrigação de proteger o território. Muito, provavelmente, foram os caçadores, pescadores, que entram no território, que estão em contato com os indígenas quase o tempo todo, que transmitiram a doença. A Funai tinha que ter feito o filtro da penetração do território. As barreiras sanitárias não foram instaladas, os indígenas estão pedindo proteção há tempos para os isolados e são ignorados.

A Funai mandou, em 2020, retirar e leiloar 15 fotos do seu ensaio com os korubo de sua sede. Isso te magoou?

Eles usaram aquelas imagens numa postura política que eu não compreendi; em retaliação por eu participar de uma campanha junto a artistas internacionais para que o governo, o Congresso e o Judiciário brasileiros evitassem um extermínio nas aldeias. Em momento algum, nós atacamos o governo, nós apenas demandamos os Três Poderes, e eles (Funai) responderam com uma reação hiperviolenta. Eles quiseram me devolver as fotos, mas estas fotos não são nem da Funai e nem são minhas. Essas fotos pertencem ao meu País, pertencem ao Brasil. Hoje, elas estão em exposição no Ministério Público Federal (MPF).

O que diz a Funai

“Assim como os demais órgãos do governo federal, a Fundação Nacional do Índio (Funai) vem adotando todas as medidas que se encontram ao seu alcance no enfrentamento ao novo coronavírus. A Fundação reforça que em nenhum momento se eximiu de qualquer obrigação legal de proteção e promoção dos direitos dos indígenas, no âmbito de suas competências”.

Desde o início da pandemia, a Funai já destinou, aproximadamente, R$ 102 milhões para ações de prevenção à Covid-19, com destaque para a entrega de mais de 1,2 milhão de cestas básicas a indígenas de todo o País, contribuindo para a garantia da segurança alimentar, nas aldeias, e para que os indígenas evitem deslocamentos, minimizando, assim, as chances de contágio. São cerca de 27 mil toneladas de alimentos distribuídas a mais de 200 mil famílias indígenas. A ação mobiliza servidores da Funai, de Norte a Sul do País.

O órgão investiu também R$ 55 milhões em ações de fiscalização em Terras Indígenas de todo o País, durante a pandemia. As atividades são fundamentais para coibir ilícitos e garantir a segurança das comunidades, prevenindo o contágio dessas populações pela Covid-19. A Funai investiu, ainda, cerca de R$ 26 milhões no suporte a atividades produtivas, nas aldeias, no período da pandemia, que buscam proporcionar a autossuficiência alimentar e econômica.

Cabe ressaltar que todas as informações sobre medidas de combate à Covid-19 e proteção dos indígenas têm sido amplamente divulgadas nos canais oficiais de comunicação da Funai desde o início da pandemia.

Sobre a saúde indígena, cumpre esclarecer que a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) trabalham de forma articulada. A Funai tem o papel de monitorar as ações e serviços de atenção à saúde indígena, enquanto a execução dos trabalhos é de responsabilidade do Ministério da Saúde, por meio da Sesai.

Por força do Decreto nº 9.795, de 17 de maio de 2019, fica a cargo da Sesai a coordenação e execução da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), no Sistema Único de Saúde (SUS), com participação dos Estados e municípios.

Destaca-se, por fim, que a atual gestão da Funai tem trabalhado firmemente para resolver uma série de problemas, fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira. A Nova Funai tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica, pacificação de conflitos e promoção da autonomia dos indígenas, que devem ser, por excelência, os protagonistas da própria história”.

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