O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — Desafios para a valorização da herança africana no Brasil — suponho que surpreendeu professores e estudantes nesta edição de 2024. Onze anos atrás, a Lei nº 10.639/2003 tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, mas, 71% dos municípios brasileiros não inseriram essa disciplina na grade curricular das escolas públicas nem cobraram dos colégios privados o cumprimento da lei.
Imaginei que muitos estudantes teriam dificuldades de elaborar um bom texto, uma vez que a lei foi ignorada desde a sua edição. Ao mesmo tempo, achei muito interessante a provocação do tema para mais de 4 milhões de estudantes inscritos no exame para acesso ao ensino superior. Coincidência pensada, ou não, este será o primeiro ano em que o 20 de novembro, Dia de Zumbi e da Consciência Negra, será feriado nacional.
Negro Cosme é para os maranhenses uma figura tão representativa quanto Zumbi dos Palmares (Reprodução/Câmara Municipal de São Luís)
Exalta-se Zumbi, pela sua resistência e coragem de fazer o enfrentamento com os escravocratas. Outros personagens que combateram a escravidão são esquecidos.. Um deles foi o rábula Luiz Gonzaga Pinto da Gama, abolicionista, poeta e jornalista, que herdou a coragem da sua mãe, Luísa Mahin. Luiz Gama destacou-se por conseguir, na Justiça, a libertação de mais de 500 escravos. Seus valores como advogado foram publicamente reconhecidos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2015, 133 anos após sua morte, em 1882. Mahin foi uma das líderes da Revolta dos Malês, em 1835, na Bahia, que reuniu mais de 600 negros contrra a opressão dos seus algozes. Ela pertencia a tribo Mahi, da nação africana Nagô e foi, como milhares de outros, sequestrada pelos traficantes de negros e trazida ao país.
Em um dos volumes da trilogia Escravidão, o jornalista e escritor Laurentino Gomes, destaca que “a própria tecnologia de mineração de Minas Gerais aparentemente veio da África e não da Europa. Os portugueses sabiam fazer açúcar, mas não sabiam garimpar ouro e diamante. Quem sabiam eram os africanos, que conheciam essas tecnologias muito bem”.
Na literatura, antes da edição da Lei Áurea, negros e negras escreviam sobre o obscuro período da história do país. Entre eles, Maria Firmina dos Reis (1822 – 1917). Ela fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), algo até então impensável: um instrumento de crítica ao modelo escravocrata. A professora Régia Agostinho da Silva, da Universidade Federal do Maranhão, afirmou: “Em sua literatura, os escravos são nobres e generosos. Estão em pé de igualdade com os brancos e, quando a autora dá voz a eles, deixa que eles mesmos contem suas tragédias. O que já é um salto imenso em relação a outros textos abolicionistas”.
Os desafios, em pleno século 21, são muitos para que os negros sejam reconhecidos como humanos que deram enorme contribuição ao desenvolvimento do país. Hoje, na ciência, na tecnologia, na literatura e em tantos outros setores, eles, como maioria da população, seguem sendo capazes de deixar muitas outras heranças positivas às novas gerações. O não reconhecimento dessa possibilidade é sustentado e alimentado pelo racismo com toda perversidade nele entranhada. A verdadeira abolição só existirá quando houver a erradicação do trabalho análogo ao da escravidão e do preconceito. Para isso, educação e justiça são essenciais, a fim de que prevaleça o respeito e a equidade, independentemente da cor da pele.
(*)Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas residindo em Brasília há 62 anos, é jornalista há 42 anos. Ela trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil e, atualmente, ocupa o cargo de subeditora de Opinião, no Correio Braziliense.
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