A privatização dos Correios e o apagão social na Amazônia

Aprovação do projeto de lei que permite a privatização da empresa só deve ser votada em agosto, após o recesso no Congresso (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Bruno Pacheco, Iury Lima e Danilo Alves – Da Cenarium

MANAUS (AM), VILHENA (RO) e BELÉM (PA) – O responsável pelo envio e entrega de correspondências e encomendas no Brasil é a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ou simplesmente Correios. A empresa pública, criada há 358 anos, tem o monopólio colocado em xeque com o Projeto de Lei (PL) 591, cuja votação foi adiada para agosto, após o recesso do Congresso. A medida, se aprovada, permitirá a privatização dos Correios, encarecendo o serviço oferecido e prejudicando a população mais carente do País, principalmente, aqueles que vivem nas zonas mais distantes das metrópoles.

A empresa, além de ajudar a aproximar a população, por meio de cartas e serviços postais, tem uma função social. Por exemplo, a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ocorre com um esforço conjunto dos Correios, que há 12 anos faz a logística e entrega das provas das mais diversas zonas do Brasil. Além disso, a entrega de livros e materiais didáticos nas escolas públicas do País é feita por meio de um contrato entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), de acordo com o Ministério da Educação.

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Para especialistas, a partir da privatização da empresa, zonas periféricas e as cidades dos interiores dos Estados podem ficar descobertas, sem o serviço de entrega postal, por conta da distância e do custo logístico. A economista Denise Kassama, vice-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofeson), explica que os Correios cumpre um importante papel de desenvolvimento nas áreas mais distantes e a falta de cobertura trará resultados cruciais para a realidade amazônica.

“Se olharmos para a nossa realidade amazônica, onde as distâncias e o custo logístico é alto e as agências e postos não possuem um volume de serviços tão significativo quanto nas metrópoles, podendo até ser comercialmente desinteressantes, mas possuem um papel fundamental na comunicação logística destes interiores, cumprindo um importante papel no desenvolvimento das áreas mais distantes”, explica.

Para Denise, a privatização da empresa põe em risco as agências, uma vez que a preocupação passa a ser o resultado do serviço. Segundo ela, há ainda o risco do aumento de preços por conta da baixa demanda. “Principalmente, o risco de fechamento de agências, deixando essa população descoberta destes serviços. Nas duas situações, quem perde é a população”, concluiu.

Atualmente, os Correios empregam cerca de 100 mil trabalhadores espalhados pelo País. Em 2020, segundo o governo federal, a empresa teve um lucro bilionário estimado em R$ 1,53 bilhão, considerado o maior resultado nos últimos 10 anos. Para o advogado e sociólogo Carlos Santiago, privatizar os Correios é entregar para a iniciativa privada um negócio lucrativo e estratégico, deixando milhões de brasileiros sem esse serviço essencial, além de ser inconstitucional.

“Não existe na Constituição nenhum dispositivo que autorize a privatização dos Correios, pelo contrário, há disposições que vedam tal iniciativa pelo Poder Executivo Federal. Ademais, os serviços postais e o correio aéreo nacional acumulam lucros financeiros enormes e promovem serviços essenciais, porque chega nas localidades bem distantes de forma rápida e segura, em especial, neste momento de pandemia, contribuindo com a economia e a cidadania de milhões de brasileiros”, pontuou.

Importância para comunidades

Em Rondônia, um dos Estados mais populosos da Amazônia Legal, tem quase dois milhões de habitantes espalhados por 52 municípios, além de distritos, comunidades tradicionais e quase isoladas. São cerca de 70 unidades dos Correios em todo o Estado, mas é justamente nesses locais mais remotos em que a presença e a atuação da empresa pública se tornam mais significativas, como é o caso da Reserva Extrativista (Resex) Rio Cautário, localizada na região do Vale Guaporé, entre as cidades de Costa Marques e Guajará-Mirim, na fronteira com a Bolívia, a cerca de 700 quilômetros de Porto Velho.

Estrada de acesso à Reserva Extrativista Rio Cautário, citada no texto (Frank Néry/Arquivo Pessoal)

Por lá, os serviços postais chegam apenas por intermédio de muito esforço dos servidores, que chegam a entregar até medicamentos – uma espécie de serviço social que entra na mira da extinção com a possibilidade da privatização.

“Os grandes empresários não vão se preocupar em atender as regiões onde o lucro será ínfimo. Os Correios trabalham com o subsídio cruzado, que faz com que os lucros obtidos nos grandes centros urbanos sejam utilizados para manter os serviços em todos os limites do território brasileiro. Desse modo, não se garante somente a geração lucrativa, mas principalmente a manutenção da ligação entre todos os setores da sociedade, independentemente da distância por meio de serviços com baixo custo”, declarou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Empresa de Correios e Telégrafos de Rondônia (Sintect-RO), Lucival Lemos.

Luvical Lemos, presidente do Sintect-RO, 40 anos. (Reprodução/Acervo Pessoal)

Para ele, “a privatização dos Correios significa condenar os cidadãos moradores de áreas distantes das grandes cidades ao isolamento postal e ao sofrimento financeiro em razão dos preços exorbitantes que certamente serão praticados por possíveis operadores de serviços postais nesses locais” e completa alegando que as atividades que dependem de convênios firmados em parcerias governamentais estaduais e municipais para distribuição de material didático, por exemplo, também entram na mira da precarização, além da entrega de medicamentos, emissões de CPFs, e até envio de encomendas econômicas.

“Dentro do contexto da Amazônia, como bem acontece em Rondônia, vemos muitos trabalhadores dos Correios realizarem seu trabalho por meio canoa e até de barco para entregar correspondências. Com certeza as empresas privadas não vão se preocupar com esse lado social. A ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) também faz parte da base econômica das pequenas cidades, de modo que se garante a participação na economia nacional até mesmo para os povoados mais distantes”, ressaltou o presidente do sindicato.

Prejuízos

Aos 20 anos, Josias Oliveira recebeu pelos Correios o diploma de técnico em saúde bucal, depois de fazer um curso a distância na comunidade rural, no interior do Pará, onde vive desde que nasceu. O documento, no qual ele esperou por meses não chegou na porta de casa. O jovem precisou sair do vilarejo, chamado Distrito do Louro e enfrentar uma hora e meia de estrada de terra até chegar a agência mais próxima, no município de Garrafão do Norte (distante 242 quilômetros de Belém). A próxima viagem de Josias para receber uma encomenda ou documento poderá ser mais longa e cara, caso a agência dos correios de Garrafão deixe de funcionar por conta da privatização da estatal.

“Caso a mudança ocorra, será um prejuízo enorme para todos nós que vivemos em comunidades afastadas, pois se as novas empresas do setor privados não tiverem interesse em entregar na nossa região precisaremos nos deslocar ainda mais para receber as correspondências ou algo que é comprado online, já que o único serviço de tecnologia disponível por aqui é a internet via satélite”, disse.

Ele contou que, como na comunidade não há serviço de correios, são os agentes comunitários de saúde os responsáveis pela entregas de algumas correspondências e pelo serviço de emissão da segunda via do Cadastro de Pessoa Física (CPF), no qual também é realizado na agência Correios.

Josias Oliveira mora no Distrito do Louro, interior do Pará (Arquivo Pessoal)

“Nós vivemos por meio do que nós cultivamos, somos uma comunidade pobre, por isso é difícil o deslocamento. Imagina só se os agentes do Sistema único de Saúde não puderem mais nos auxiliar nessas entregas? Na minha opinião, o projeto precisa ser revisto com urgência”, contestou.

Assim como Josias, milhares de pessoas que vivem no interior dos 772 municípios da Amazônia Legal são os mais preocupados com a privatização dos correios devido a dificuldade de logística para entrega de correspondências, além da prestação de serviços bancários específicos em agências localizadas dentro da região Amazônica. O professor universitário e economista João Xavier explicou que Correios tiveram em 2020 lucro estimado em R$ 1,5 bilhão, mas o sistema de entregas ficou defasado demais para o governo administrar. O temor é que
empresas privadas negociem os locais que queiram funcionar, levando assim uma setorização do sistema.

“Mesmo que serviço tenha total cobertura em todos os municípios brasileiros, o preço do serviço vai ficar mais caro. Ainda não é possível mensurar o valor total desse aumento, mas em algumas cidades do interior do Pará o frete já aumentou cerca 20%. No projeto brasileiro, a caberia à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) a vigilância para manter a universalização das entregas, mas isso também não garantia da cobertura total do serviço), explicou.

A força sindical do carteiros no Pará também teme pelo projeto de lei. Atualmente a capital Belém possui cerca de 350 carteiros, sem contar com o restante de funcionários internos, que segundo presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos do Estado (Sincort/PA), podem perder seus postos de trabalho.

“A luta da categoria já é longa, pois nunca fomos valorizados como profissionais. No entanto, tirar os Correios do Brasil é uma ameaça à Constituição. Milhares de pessoas perderão seus empregos e pela situação atual do Brasil, o desemprego só deve aumentar”, lamentou.

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