A reprodução do machismo pelas mulheres e suas implicações
Por: Elisiane Andrade*
23 de novembro de 2025Por: Elisiane Andrade*
“Tem mulher que merece apanhar.” “Eu sou a favor da violência contra a mulher.” “Não quero ser presidente, não. Quero ser primeira-dama.” “Toma, vagabunda.” “Ótimo, que fique lá.”
Essas frases, lamentavelmente, foram proferidas por mulheres. As duas primeiras fazem parte do discurso da vereadora Elizabeth Maciel, a Betinha, na Câmara Municipal do município de Borba, no estado do Amazonas. Em seguida, temos a fala de Michelle Bolsonaro durante um evento em Ji-Paraná, Rondônia. Por fim, uma frase retirada de um comentário nas redes sociais a respeito da deputada federal Luziane Lins — detida em uma flotilha em Israel.
Essas declarações, para além de impactantes, escancaram o quanto o machismo continua em curso na sociedade. Quando reproduzidas por mulheres, tornam-se mais um combustível para o fortalecimento do patriarcado — um sistema profundamente enraizado em estruturas de poder, desigualdade e privilégios. Tais reproduções precisam ser analisadas de forma crítica e estrutural, pois não são fatos isolados, inconscientes ou não, representam uma realidade que não podemos ignorar.
Diante dessas e de outras reproduções que ocorrem no cotidiano, é comum surgirem questionamentos, como: por que existem mulheres machistas? Por que algumas mulheres ficam sempre ao lado do filho e contra a nora, em situações em que deveriam apoiá-la? A resposta está na própria estrutura patriarcal na qual todos/as nós, homens e mulheres, somos criados/as. A reprodução de discursos e atitudes machistas por parte de algumas mulheres é uma consequência direta do processo avassalador promovido por esse sistema.
O patriarcado opera na concentração de poder e na reprodução de papéis sociais em diversas esferas, como a família e a política, estando impregnado nas culturas. Afeta a todos, mas especialmente às mulheres, que são, historicamente, as mais atingidas em todos os campos da vida. A filósofa Marcia Tiburi explica que o patriarcado é o sistema, o machismo é sua tecnologia política e a misoginia é o discurso de ódio que sustenta essa tecnologia. Ou seja, não há patriarcado sem machismo, nem sem misoginia. São engrenagens que operam em conjunto para garantir a manutenção do poder masculino e a subjugação feminina.
Na fala da vereadora Betinha, o ódio contra as mulheres está explícito. Isso acende o alerta sobre a urgência de continuarmos desconstruindo esse machismo estrutural que nos oprime e nos mata. A declaração foi duramente repudiada por movimentos de mulheres e recebeu ampla repercussão negativa nos meios de comunicação. Em resposta, a vereadora gravou um vídeo retratando-se. Mas pedir desculpas não basta: é preciso reconhecer a responsabilidade de ocupar um cargo nos espaços de poder e decisão, e o papel que se desempenha na sociedade. Como afirma Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Ser mulher não é apenas uma questão biológica, mas de construção subjetiva, social e política.
Quando uma mulher afirma ser a favor da violência contra a mulher, precisamos atentar para o simbolismo e as consequências dessas falas. São expressões que, além de legitimarem o patriarcado, também afrontam e banalizam toda a luta feminista construída ao longo da história. É um desrespeito à Lei Maria da Penha, à Lei do Feminicídio e a todas as mulheres que lutam, cotidianamente, pelo direito de existir e coexistir.
Essas falas não podem ser tratadas como meras opiniões — elas têm implicações graves. Reforçam relações de poder que colocam o masculino acima do feminino e legitimam a violência, o silenciamento e a submissão. Mulheres que reproduzem o machismo precisam tomar consciência de que elas também sofrem as consequências: criam filhos violentos, normalizam agressões, naturalizam as violências de seus companheiros e alimentam ciclos de dor.
A socióloga Heleieth Saffioti ressalta que o patriarcado não se limita à família, mas atravessa toda a sociedade. Está presente na escola, nas igrejas, no parlamento e, principalmente, na instituição familiar — considerada o laboratório mais potente de produção e reprodução do machismo. É nesse espaço que se aprende a inferiorização dos corpos femininos, se naturaliza o silenciamento das mulheres e se perpetuam comportamentos violentos.
A fala de Michelle Bolsonaro reforça o imaginário de que o lugar da mulher na sociedade é secundário, da submissão, da inferioridade, do privado, da incapacidade intelectual e política. Ou seja, reforça a misoginia e reafirma que a política é um espaço unicamente masculino.
É lamentável nos depararmos com discursos de ódio vindos das poucas mulheres que ocupam o parlamento — especialmente de uma parlamentar de um estado como o Amazonas, que ocupa a terceira posição no ranking nacional de violência contra a mulher. Esse espaço de pouca representatividade feminina deveria ser utilizado para cobrar políticas públicas para as mulheres e servir como mais uma ferramenta de denúncia das violências às quais elas estão sujeitas.
A referida vereadora, assim como as demais mulheres que têm acesso aos diversos canais de diálogo com a sociedade, deveriam fazer ecoar nossas vozes, fazer coro aos movimentos feministas que, historicamente, vêm lutando pelos direitos das mulheres e, principalmente, enfrentando o machismo e denunciando suas consequências para as mulheres e toda a sociedade. Afinal, não há democracia sem o reconhecimento das mulheres como sujeitos pertencentes e construtoras da sociedade. A desconstrução do machismo é uma tarefa coletiva.
(*) Elisiane Andrade é professora, graduada em Pedagogia, especialista em Gestão Pública, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e integrante do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social em Gênero, Política e Poder (Gepos). Atua como ativista na Marcha Mundial das Mulheres.