A vacina que eu não tomei

Não me dava conta de que eu era diferente. Na verdade, não me lembro até onde perdurou essa inocência em relação a mim mesmo. Só sei que até então Mãe dispensava a mim cuidados diferenciados, motivos de ciúmes entre os irmãos e agregados mais taludos. Eu era sempre o primeiro a ser contemplado com o milagre da multiplicação nas refeições. O café preto da manhã já chegava em minhas mãos pronto para ser tomado. Mãe cuidava antes de esfriá-lo transferindo-o sucessivamente de uma caneca para outra. Era sua técnica para deixá-lo na temperatura ideal. Não raro, quando percebia que eu prendia os lábios e fazia uma careta ao primeiro gole, reclamando da quentura, com a paciência que só os anjos têm repetia o processo mais algumas vezes. Nos dias em que contávamos com o luxo da manteiga, o meu pedaço de pão era sempre o mais beneficiado.

Já no almoço, enquanto irmãos e agregados recebiam seu prato de esmalte abastecido com um ralo caldo, um pedaço de peixe e uma porção de farinha medida por Mãe em sua própria mão, a mim cabia o privilégio de abrigar em meu prato pedaços de peixe frito cuidadosamente catados, uma generosa porção de arroz e a infalível recomendação para, ainda assim, mastigar bem e tomar cuidado com alguma espinha que tivesse escapado do crivo habilidoso de seus dedos. Na hora do lanche à noitinha, não era diferente. Enquanto os outros saciavam a fome com café preto e um pedaço de pão distribuído de forma salomônica, Mãe costumava reservar para mim os últimos sinais de manteiga dos 200 gramas comprados no dia anterior. Com a ajuda de uma colher, raspava o pequeno pedaço de papel que servia de embalagem, aproveitando o possível e o impossível, até deixá-lo livre de qualquer vestígio do produto. Passava em meu pedaço de pão, espetava-o na ponta de um gafo e aquecia-o por algum tempo nas brasas que ainda sobreviviam no fogareiro disposto no jirau. A manteiga se derretia por entre os miolos do pão, a casca ficava levemente tostada e eu saboreava aquele privilégio sob os olhares enciumados da penca de meninos e meninas em volta da grande mesa retangular de madeira na cozinha.

Na inocência dos meus cinco ou seis anos, eu julgava que aquele tratamento se devia à única e exclusiva razão de eu ser o caçula, o queridinho, o último dos moicanos de uma generosa safra dos quinze partos de Mãe, dos quais apenas sete tinham sobrevivido às duras adversidades nas barrancas de Santarém. Só depois, então, ouvindo conversas de Mãe com vizinhos e parentes, confirmei que havia também outro motivo. Mas isso eu descobri aos poucos, ao sabor do tempo e da razão infantil, até juntar as peças. Sempre que Mãe me levava à missa, aos domingos, no percurso e na igreja eu era alvo de olhares de lamento, compaixão e pena. Nas brincadeiras perto de casa, alguns colegas de travessuras me dirigiam olhares de solidariedade; outros, olhares de puro desdém; outros, ainda, olhares do mais puro deboche acompanhado de piadinhas e desfeitas.

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De fato, eu era diferente e não sabia, mesmo que aquela diferença em nada me atrapalhasse, em nada me impedisse de fazer peraltices, de nadar feito piaba no igarapé, de jogar bola, de correr atrás de papagaios que pareciam dançar valsas nos céus azulados dos verões de minha infância, de escalar as cercas e fruteiras que abasteciam os quintais de minha infância e nos impediam de passar fome. Foi quando, pela primeira vez, ouvi Mãe em uma conversa confidenciar a uma amiga que, com um ano de idade, eu tinha tido uma tal de ‘paralisia infantil’, que, quando não matava, deixava marcas físicas profundas no corpo e às vezes na alma de suas vítimas. Em mim, e Mãe dizia que graças a Deus eu era um menino de muita sorte, tinha me poupado de uma herança mais grave. Daí a minha perna esquerda ter ficado atrofiada e levemente mais curta. Daí eu ser diferente. Daí eu ser alvo preferencial daquela multiplicidade de olhares, alguns doces, outros perversos.

Mais tarde, levado pela curiosidade, descobri que eu, como milhões de crianças no mundo, tinha sido tragado por um vírus de nome sofisticado chamado Poliomielite, uma inflamação da substância cinzenta da medula espinhal. Assim estava escrito num dos surrados volumes do Tesouro da Juventude esquecidos no canto de uma sala pouco frequentada no Grupo Escolar Olavo Bilac. Descobri, também, que a primeira vacina contra a Pólio, muito antes de se falar em Albert Sabin, tinha sido criada um ano antes da minha vinda ao mundo. Da mesma forma, sem nada entender ainda sobre luta de classes, descobri que eu não tinha sido apenas vítima da vacina que eu não tomei, mas sobretudo vítima da pobreza.

Hoje, depois de tanto tempo, mesmo com o passado tão progressivo transformado em memória e o futuro a se reduzir a cada dia no horizonte da idade, o menino que insiste em habitar esse corpo velho e cansado não me deixa esquecer nunca o velho prato de esmalte com arroz e os pedacinhos de peixe pacientemente catados por Mãe. Afinal, eu era o caçula da turma.

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(*)Odenildo Sena é linguista, com mestrado e doutorado em Linguística Aplicada e tem interesses nas áreas do discurso e da produção escrita.

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