Ka tücüna naina. Frase escrita na gramática Kanamari e traduzida para o português significa: Olá, leitor(a).
Os municípios do interior do Amazonas são exemplos claros do abandono do Estado, do descumprimento das leis e da violação dos direitos fundamentais dos povos indígenas. A maioria desses municípios estão distantes da capital Manaus, e refletem uma realidade de desigualdade extrema, onde as comunidades indígenas vivem à mercê de uma oligarquia local composta por “coronéis de barranco”, que mantêm o controle sobre as populações e impedem o avanço da justiça social. A educação, direito garantido pela Constituição, ainda é um privilégio para poucos, e para os povos indígenas, essa situação se torna ainda mais alarmante, especialmente nas aldeias mais isoladas. Em municípios como Itamarati, Carauari, Juruá e Eirunepé, localizados as margens do nosso querido Rio Juruá, a falta de ação estatal e a ineficiência do sistema de justiça local contribuem para a perpetuação dessa realidade de descaso e desproteção.
Embora a Constituição e outras legislações garantam aos povos indígenas o direito à educação, a realidade nos municípios do interior do Amazonas é bem diferente. A maioria das escolas nas áreas indígenas encontra-se em péssimas condições estruturais, muitas vezes em estado de ruína. A situação é bem complicada, pois a uma ausência de quase tudo, pois quando as prefeituras enviam professores para as aldeias, eles frequentemente não têm as qualificações mínimas exigidas pela legislação, e a falta de materiais escolares e de infraestrutura básica nas escolas improvisadas agrava ainda mais a situação. Em muitos casos, os educadores sequer concluíram o ensino médio de forma regular, sendo analfabetos funcionais, o que compromete gravemente a qualidade do ensino oferecido às crianças e jovens indígenas.
Este quadro de exclusão educacional é apenas uma das várias manifestações da ausência do Estado e da violação dos direitos dos povos originários. O acesso à educação de qualidade é um desafio constante para os indígenas, sendo quase impossível superar as barreiras sociais, linguísticas, culturais e geográficas. A realidade de muitas aldeias é a de um abandono completo, onde as políticas públicas não chegam, deixando essas populações à margem da sociedade e sem acesso aos direitos mais básicos. Para acessar serviços públicos ou buscar auxílio, muitos indígenas precisam viajar por dias até a comarca mais próxima, onde enfrentam o racismo, o preconceito e a xenofobia de uma sociedade que os marginaliza.
Além disso, os povos indígenas enfrentam sérias violações de seus direitos econômicos e sociais. Situações narradas pelos indígenas de que empresários locais retêm, ilegalmente, os cartões de benefícios como o Bolsa Família são frequentes, e o resultado dessas ações acaba por privar as comunidades indígenas dos recursos que lhes são devidos. Não há fiscalização efetiva para coibir essas práticas, e os responsáveis por essas ilegalidades permanecem impunes. As denúncias, em grande parte, vêm de organizações da sociedade civil, já que a maioria das vítimas, por questões linguísticas e culturais, não consegue se comunicar em português e, portanto, são mais vulneráveis à exploração e violação de seus direitos.
Os gestores municipais, que perpetuam suas ações semelhantes aos dos “coronéis de barranco”, desempenham um papel central nesse processo de invisibilidade e exclusão. Estes gestores, só lembram das comunidades indígenas durante os períodos eleitorais, utilizando as prefeituras como cabides de emprego para amigos e familiares, cujas atitudes insensíveis e incompetentes perpetuam a marginalização da população indígena. O genocídio cultural e social dos povos indígenas no Amazonas ocorre de forma silenciosa, mas é igualmente eficaz. As políticas públicas destinadas a essas populações são inexistentes ou ineficazes, e é claro que a intenção dos governantes locais é mantê-los afastados de seus direitos fundamentais.
Como advogada atuante na defesa dos direitos humanos dos povos originários, é impossível ignorar a gravidade dessa situação. O abandono institucional por parte do Estado e a negligência do sistema de justiça representam uma afronta aos direitos humanos dos povos indígenas no interior do Amazonas. As falhas nas políticas públicas são evidentes, e a luta por justiça, igualdade e respeito aos povos originários deve ser uma prioridade urgente. Não podemos permitir que o Estado continue a perpetuar este ciclo de exclusão e invisibilidade, que não apenas enfraquece as comunidades, mas também apaga sua história e cultura, relegando-os ao esquecimento e à marginalização.
Bapo ikoni. Até a próxima pauta.
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(*)Inory Kanamari, primeira advogada indígena do povo Kanamari. Atuou como presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da OAB/AM de 2022 a 2024, vice-presidente da Comissão Especial de Amparo e Defesa dos Povos Indígenas no Conselho Federal da OAB de 2023 a 2024. Também atuou como consultora no projeto de tradução da Constituição Federal para a língua indígena Nheengatu no Conselho Nacional de Justiça. É articulista da REVISTA CENARIUM, ativista, poetisa e membra da Academia de Letras, Ciências e Cultura da Amazônia (Alcama). Escreve como colaboradora toda terça-feira para o Portal Info.Revolução.