‘Absurdo naturalizado’, dizem especialistas sobre exposição de crianças com armas em atos de Bolsonaro

O episódio mais recente ocorreu em um evento realizado em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais, em comemoração aos mil dias de gestão de Bolsonaro. (Ygor Barbosa/Cenarium)

Iury Lima e Gabriel Abreu – Da Cenarium

VILHENA (RO) E MANAUS (AM) – Especialistas ouvidos pela CENARIUM repudiaram, neste sábado, 2, uma das “muletas” utilizadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem partido), para gerar carisma e agradar apoiadores: a utilização de crianças em atos políticos e a associação da imagem delas ao uso de armas de fogo. “Absurdo que causaria indignação em qualquer país civilizado, aqui foi naturalizado”, lamentou o cientista político Carlos Santiago. 

O mais recente episódio polêmico ocorreu na última quinta-feira, 30, em um evento realizado em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, em comemoração aos mil dias de gestão de Bolsonaro. Um menino aparece sentado sobre os ombros do presidente segurando a réplica de um fuzil.

Criança em cima dos ombros de Jair Bolsonaro segurando um réplica de fuzil (Isaac Nóbrega/Divulgação)

A repercussão rendeu um puxão de orelha ao presidente por meio de uma nota da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Intitulado “Arma não é brinquedo”, o documento destacou que as crianças não têm capacidade de distinguir uma arma falsa de outra real.

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“O que está em jogo é a vida e a integridade física e emocional de milhares de crianças e adolescentes. Por isso, os pediatras conclamam as autoridades para uma profunda reflexão sobre os efeitos destas ações de mídia e de marketing, que devem se basear na legislação e na ética, e nunca serem maiores que o compromisso com a dignidade da população brasileira”, diz um trecho do texto da SBP.

O manifesto ainda citou um estudo recente que revelou que quase 60%, de um grupo de crianças com idades entre 7 e 17 anos, não souberam diferenciar armas reais das armas de brinquedo e que, além disso, a cada uma hora uma criança ou adolescente morre, no Brasil, vítima de disparo de arma de fogo. “A SBP lamenta que cenas como as exibidas às vésperas do mês das crianças sejam cada vez mais frequentes”, diz a sociedade de pediatria.

No entanto, a aparição de crianças com armas de brinquedo, vestidas com uniformes militares e fazendo sinal de ‘arminha’ com as mãos é uma das marcas registradas do chefe do Executivo Nacional, vista com reprovação pelo cientista político Carlos Santiago. “É uma imagem forte. Parece até de áreas ou de zonas de conflitos armados. O presidente Bolsonaro não é um estadista e nem um bom administrador. É tão somente, como demonstra a imagem, um péssimo exemplo como pessoa e como governante”, avaliou o cientista político.

O cientista político Carlos Santiago classifica Bolsonaro como péssimo governante. (Reprodução/Acervo pessoal)

Para o especialista, a imagem em questão demonstra que o mal tomou conta da política e do cotidiano dos brasileiros. “Essa foto representa muito do perfil do atual presidente do Brasil: não criou nada de louvável para retirar milhares de crianças das ruas, tentou dividir a educação entre crianças ‘normais’ e ‘anormais’ quando o seu ministro disse que via dificuldades de incluir alunos com deficiências nas salas de aula. Ele, em plena pandemia, nunca visitou os hospitais e nem teve compaixão pelos mortos, disse que prefere armas e que o feijão não é prioridade”, destacou.

Comportamento antiético

Para o sociólogo e advogado Helso Ribeiro, o comportamento de Bolsonaro como presidente é antiético. “Eu acho lastimável ao cubo. Eu desafio as 40 democracias tradicionais, todos os países europeus, Canadá, Estados Unidos, as democracias da América, Oceania (…) nenhum chefe de Estado vai posar com uma criança e uma metralhadora”, afirmou Ribeiro.

O advogado e sociólogo Helso Ribeiro. (Reprodução/Acervo pessoal)

Ribeiro também comparou a postura do presidente com a de grupos violentos e extremistas. “Isso aí você vai encontrar lá com os Xiitas, os Talibãs, os Boko Haram, que são grupos extremistas com pouco apreço com a democracia e muito menos valores. Você colocar uma criança armada excede todos os limites”, afirmou, indignado o advogado e também sociólogo.

Doutrina da violência

O sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Luiz Antonio avalia como a “normalização da barbárie”, como ele mesmo diz, afeta a formação dos pequenos como pessoas. “O que o Bolsonaro propõe é educar as crianças a serem agressivas e violentas desde crianças. Isso deve ser repudiado por todas as pessoas de bem, independentemente da posição ideológica ou partidária”, declarou.

“As fotos do Bolsonaro com crianças reproduzindo fardas militares e segurando fuzis nas mãos só revelam uma coisa: a miséria humana ainda não está superada. A miséria, a crueldade e perversidade de algumas figuras não estão superadas. Tem um tipo específico de gente que acha que isso é normal e isso não pode ser admitido como normal”, continuou o especialista.

O sociólogo e professor universitário da Ufam diz que as fotos de Bolsonaro com armas e crianças revelam a miséria e a perversidade humana (Reprodução/Acervo pessoal)

Ele afirma, também, que as fotos protagonizadas por Bolsonaro influenciando crianças geram uma carga de violência e de ódio. “Uma carga que identifica o outro, diferente de mim, como meu inimigo. E o que você faz com o seu inimigo? Você elimina. E isso é a barbárie restabelecida, porque nós superamos isso desde o século 17”, avaliou.

“O que o Bolsonaro faz o tempo todo é chamar para o campo do conflito e chamar para o campo do conflito armado. O campo do conflito armado só tem como resultado o ódio e a dor”, lamentou Luiz Antonio, ressaltando que morreram quase 600 mil pessoas no Brasil, desde 2001, vítimas de disparos de armas de fogo, segundo dados do Ministério da Saúde (MS).

“E a maioria absoluta dessas mortes é resultado de conflitos que poderiam ter sido resolvidos mediante uma negociação”, concluiu.

Os pais também têm parcela de culpa

Mestra em Psicologia, Gésica Bergamini avalia a conduta dos pais nesse contexto, chegando à conclusão de que não basta que eles autorizem a participação ou a exposição dos filhos, mas que também deve haver consentimento ou, ao menos, assentimento, o que a leva a outra reflexão: as crianças têm capacidade para escolher e decidir por suas próprias vontades? Também não. Nessa hora é que os adultos deveriam ligar o filtro e decidir sobre qual realidade gostariam de apresentar a quem ainda está em processo de formação da própria personalidade e comportamento.

“A criança ainda não tem uma estrutura psicológica, uma maturidade, para saber se ela quer ser exposta dessa forma, em termos de mídia e redes sociais. Então, qual vai ser o impacto disso no futuro dessa criança? Um adulto pode dizer que quer aparecer ou não, é a questão do consentimento”, avaliou Bergamini. 

Para a mestra em Psicologia Gésica Bergamini naturalizar a violência afeta o desenvolvimento cognitivo da criança. (Reprodução/Acervo pessoal)

“A gente compreende que a criança nasce sem experiências. Então, se a gente mostrar a essa criança um mundo violento, agressivo, que tudo bem usar armas, que tudo bem matar pessoas, nesse sentido, ela vai ver tudo isso como normal. Não quer dizer que ela vai matar pessoas, mas para ela vai ser normal, do cotidiano”, detalhou a mestra em Psicologia.

A especialista explica que todo o contexto social externo acaba estruturando o padrão de comportamento das crianças, podendo gerar sérios resultados negativos caso elas cresçam em ambientes aversivos.

“Com certeza, isso gera um efeito negativo em curto, médio e longo prazo na própria compreensão de mundo dessa criança, que não tem ainda maturidade cognitiva, em termos de desenvolvimento cerebral mesmo, para distinguir o que é certo e errado, moral, amoral e imoral, então, ela ainda está escassa desses elementos básicos da sua estrutura cognitiva”, completou Gésica Bergamini. 

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