Abusos e poder: processo sem fim no Pará
Por: João Paulo Guimarães – Especial para a Cenarium
30 de julho de 2025
BELÉM (PA) – Há 20 anos, o Pará acompanha um dos casos mais brutais de pedofilia de sua história, que envolve poder e que ainda segue sem punição. O ex-deputado Luiz Afonso Sefer, condenado a 21 anos de prisão por estupro reiterado de uma menina (crime em continuidade delitiva) e ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 120 mil, jamais iniciou o cumprimento da pena. Protegido por sucessivas manobras jurídicas, ele vem adiando o cumprimento da sentença. Os abusos foram cometidos entre 2005 e 2008, quando a vítima tinha entre 9 e 13 anos de idade. Agora, Sefer está a dois meses de completar 70 anos, em setembro, o que poderá reduzir pela metade o prazo de prescrição da pena, conforme previsto no artigo 115 do Código Penal. Favorecido por uma decisão recente do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), que mais uma vez adia a aplicação da condenação, o ex-parlamentar pode se livrar do cumprimento da pena por prescrição.
A CENARIUM teve acesso a informações sobre o processo que levou à condenação do ex-parlamentar, com detalhes que mostram a gravidade da violência sofrida. Documentos, análises de juristas e personagens que acompanham o caso desde o início também apontam para relações próximas entre Sefer e sua família com figuras influentes da política paraense, entre elas, o governador do Estado, Helder Barbalho.
A criança que denunciou os abusos, que chamaremos pelo nome fictício de Valentina, para proteger sua identidade e segurança, tinha 9 anos quando um médico da cidade de Mocajuba bateu à porta de sua casa. Ele perguntou à avó da menina se Valentina poderia morar em Belém para cuidar de outra criança, na casa de um político e médico famoso na sociedade paraense. Lá, ela teria um quarto só dela e poderia estudar e até viajar. Ganharia presentes e poderia sonhar com um futuro melhor. Valentina disse que não queria, mas a avó insistiu até que ela aceitasse embarcar na viagem que marcaria profundamente a sua vida.

Os relatos da menina sobre sua história e a violência sofrida constam nas mais de 1 mil páginas do processo, segundo informações a que nossa reportagem teve acesso. Em um trecho, foi ressaltado que a adolescente estava bastante abalada emocionalmente, que chorou durante o seu relato e disse que estava com muito medo, mas que Luiz Afonso Sefer precisava pagar pelo que fez com ela e com outras meninas que também foram vítimas dele.
Infância interrompida

Em depoimentos, Valentina contou, segundo informações a que a reportagem teve acesso, que o médico a levou para Belém e ela ficou na casa de outro indivíduo, que hospedou a criança por alguns dias até que o deputado estadual Luiz Afonso de Proença Sefer a levou para morar em seu apartamento. Chegando ao local, ela notou que algo estava errado. Não havia criança para ela cuidar, como havia sido dito para sua avó, mas sim adolescentes e maiores de idade. Os adolescentes eram Rafael Sefer, de 17 anos, e Gustavo Sefer, de 14 anos, filhos de Luiz Afonso, e uma menina de 12 anos que, de acordo com relatos de Valentina, morava no apartamento sob o pretexto de exercer a função de empregada e babá, na casa onde não havia crianças. Vamos chamá-la pelo nome fictício de Maria.
Em depoimento, segundo informações apuradas, Valentina contou que depois de se instalar nas dependências da empregada, Maria avisou que elas não estavam ali para serem babás, mas sim para serem estupradas pelo dono da casa. Dois dias depois, Maria foi embora e voltou a morar com sua família. Valentina ficou sozinha. A partir daí, contou em depoimentos, ela passou a ser violentada diariamente no quarto de Luiz Afonso Sefer e em seu quarto.
Segundo as informações apuradas pela reportagem, consta em depoimentos, que o então deputado, que também era médico proctologista, usava instrumentos cirúrgicos para torturar Valentina, como o bico de pato, usado para exames ginecológicos. A primeira vez que a menina teve coragem de pedir ajuda foi para a empregada de Luiz Afonso, que não residia no apartamento. Valentina contou pelo que passava para a mulher e pediu que ela avisasse a polícia. Em vez de denunciar, a empregada contou ao patrão, que deu uma surra na criança. Depois disso, a mulher disse à criança que não contasse a ninguém o que acontecia, pois seu patrão era um monstro.
De acordo com as informações a que a reportagem teve acesso, em depoimentos, a criança relatou que Luiz Afonso a espancava e a obrigava a ingerir bebidas alcoólicas como cerveja e whisky. Além de ser abusada pelo deputado médico, ela relatou que passou a ser abusada também pelo filho mais novo, Gustavo Sefer, hoje deputado estadual do MDB, com 38 anos de idade, e da base aliada do governador Helder Barbalho.
Em depoimentos, Valentina relatou ainda, segundo informações apuradas, que em um episódio, antes de a estuprar, Gustavo disse para ela que sabia tudo o que seu pai fazia. O filho de Sefer tinha 16 anos quando um dia, no apartamento, agarrou a criança e a levou para o quarto à força. Gustavo foi intimado a comparecer no dia 7 de janeiro de 2009 ao meio-dia, na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), no Rio de Janeiro, para prestar esclarecimentos. Naquele ano, Gustavo Sefer já estava com 18 anos de idade. Gustavo disse, segundo informações repassadas à reportagem, que a criança era fechada, mal-humorada, antissocial, não seguia regras e, por fim, se sentia injustiçado e indignado porque a criança frequentava os mesmos lugares que ele e a família e foi retirada do interior para ter oportunidades. Ele não chegou a ser denunciado pelo Ministério Público.
Em depoimentos, de acordo com informações a que a reportagem teve acesso, a menina de 9 anos demonstrou que gostava de ler e escrever, e destacava a capoeira como esporte preferido. Valentina tinha dificuldades em entender matemática, mas adorava português e ciências. Ela gostaria de ter feito o curso de informática, mas isso nunca aconteceu durante sua estadia na cidade.
A libertação da criança
Valentina tinha duas amigas na escola em que estudava. Um dia foi à casa delas para fazer um trabalho escolar. Criou coragem e contou para a mãe das meninas sobre os abusos que sofria. A mãe das amigas decidiu que ela não voltaria mais para a casa de Sefer, entrou em contato com o Conselho Tutelar, que a encaminhou para um abrigo.
De acordo com depoimentos que constam no inquérito, segundo informações apuradas, Luiz Afonso Sefer passou a ligar para a mãe das meninas, oferecendo dinheiro para a mulher, que se negou a recebê-lo. No dia 10 de novembro de 2008, Valentina finalmente foi inserida no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM).
Exames de corpo de delito do Instituto Médico Legal (IML) confirmaram que a criança era menor de idade e apresentava vestígios de penetração vaginal, anal, com múltiplas cicatrizes em ambas as regiões e várias rupturas cicatrizadas.
Em 15 de dezembro de 2008, o deputado fez um pronunciamento na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), culpando a vítima, tentando criminalizar a família dela e alegando “caridade” e inocência no caso.
Mesmo escondida em um abrigo, Valentina foi descoberta. A empregada de Sefer, em companhia de outra mulher e um advogado tentaram obter informações sobre a situação dela, de acordo com depoimentos prestados à polícia na época, conforme apurado pela reportagem. A assistente social que fazia plantão no abrigo testemunhou que ambas mulheres, aparentando ser humildes, visitaram a criança e depois foram embora em um carro de luxo, de cor preta, de acordo com descrição da assistente social.

Segundo as informações que chegaram à reportagem, há ainda depoimento apontando que o apartamento de Luiz Afonso Sefer era frequentado por muitos políticos conhecidos, como Jader Barbalho, que na época morava no mesmo prédio que o então deputado, e seu filho Helder, hoje governador do Pará. As relações de proximidade entre as duas famílias se mantêm ao longo dos anos.
Investigações
Depois que Valentina foi resgatada, a Polícia Civil iniciou investigações, tendo a então delegada do Grupo de Pronto-Emprego (GPE), Christiane Lobato, à frente do caso, que posteriormente ganhou visibilidade na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia do Senado, em seus desdobramentos no Pará. Em 25 de maio de 2009, o Ministério Público do Pará (MPPA) pediu a prisão preventiva de Luiz Afonso Sefer pelos crimes de estupro de vulnerável, atentado violento ao pudor e outros.
O MP argumentou que havia a necessidade de decretação da prisão preventiva para garantir a ordem pública em razão dos crimes atribuídos ao acusado terem causado “total repugnância no seio da sociedade já que a vítima era uma criança de apenas 9 anos”. O MP também alegou que a brutalidade dos crimes cometidos por Sefer era tão grande, que o fato de o então deputado ser réu primário, era irrelevante.
A investigação da CPI da Pedofilia no Pará, em 2009, foi marcada por forte mobilização institucional e social. O então deputado estadual Arnaldo Jordy teve papel central como relator, coordenando diligências, oitivas e análise de documentos. A CPI foi motivada por denúncias públicas feitas pelo bispo do Marajó, Dom José Luiz Azcona (já falecido), e contou com apoio da Comissão de Justiça e Paz da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), destacando-se aí a atuação da irmã Henriqueta Cavalcante, que também foi ameaçada por denunciar redes de exploração envolvendo políticos e empresários.
O Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) colaborou com a CPI fornecendo cópias de processos judiciais relacionados aos crimes investigados e o Ministério Público foi um dos principais destinatários dos encaminhamentos da CPI e participou da apuração. Representantes do MPPA participaram de reuniões com a comissão, e o procurador-geral foi formalmente oficiado para tomar providências sobre os casos. Luiz Afonso Sefer foi um dos principais alvos da investigação. A CPI tratou seu caso com destaque, realizando oitivas com diversas testemunhas, como porteiros, a vítima e a mãe dela. Também foram solicitadas perícias em computadores e a quebra de sigilos telefônicos.
A atuação da irmã Henriqueta, ligada à CNBB, foi essencial no apoio às vítimas e na articulação com a rede de proteção. Durante os trabalhos da CPI, foi feito um registro formal de ameaça contra ela, reforçando a seriedade do clima de intimidação durante as investigações.
Arnaldo Jordy, como relator, destacou a necessidade de enfrentar a impunidade e propôs a criação de mecanismos como varas judiciais especializadas. A CPI teve seu prazo prorrogado várias vezes diante da gravidade e da quantidade de casos, e seu relatório final foi entregue em fevereiro de 2010. A atuação conjunta de Jordy, irmã Henriqueta e os demais órgãos foi fundamental para dar visibilidade nacional ao problema da pedofilia e das redes de exploração sexual infantil no Pará.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também acompanhou parte das apurações, especialmente no que se refere ao funcionamento do Judiciário nos municípios mais atingidos pela rede de abusos.
Renúncia
Com a publicidade dada às denúncias contra Luiz Afonso Sefer, pressionado e para não ser cassado, o ex-deputado renunciou ao seu mandato na Assembleia Legislativa na manhã do dia 7 de abril de 2009, entregando pessoalmente a carta de renúncia e uma “Carta Aberta ao Povo do Pará”. A carta de renúncia teve apenas quatro linhas, mas foi acompanhada por um documento de três páginas e meia, no qual o deputado se defendeu das acusações de abuso sexual.
Na carta, Sefer afirmava que estava sendo alvo de perseguição política e que sua saída não representava um afastamento voluntário, mas sim uma imposição causada pela pressão do cenário político e das denúncias. “Estou abrindo mão do meu mandato de deputado estadual, que é interrompido pela perseguição política e não pela vontade do povo”, escreveu. Ele se dizia injustiçado pelo processo e alegava parcialidade nas investigações: “De maneira unilateral, formaram juízo de valor. Só deram crédito à acusação”.

Com a renúncia, a Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Alepa anunciou que arquivaria as representações, já que não havia mais objeto de análise. O presidente da comissão à época, deputado Cássio Andrade (PSB), declarou: “Com a renúncia, vamos receber as representações e vamos arquivar por não haver mais objeto”.
Vai e vem judicial
A condenação de Luiz Afonso Sefer em primeira instância, no Tribunal de Justiça do Pará, ocorreu em 2010, sendo o réu condenado a 21 anos de prisão por estupro de vulnerável em continuidade delitiva e ao pagamento de indenização de R$ 120 mil. A sentença, assinada pela juíza da Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes, Maria das Graças Alfaia Fonseca, segundo informações apuradas pela reportagem, cita que o réu possui propensão à prática de pedofilia e destaca que o crime cometido é rotulado como hediondo. O processo, no entanto, não se encerrou aí e vem sendo marcado por sucessivas reviravoltas, com a condenação já tendo sido derrubada por ao menos três vezes, sempre em decisões aprovadas por ampla maioria dos desembargadores e, em alguns casos, em sessões sigilosas.
Em 2011, em novo julgamento após recursos, a sentença foi revogada e o ex-deputado foi absolvido com o argumento de que não havia provas suficientes para a condenação. Em 2018, após recurso do Ministério Público, a condenação foi restabelecida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que devolveu o processo ao TJPA, com a vigência da ordem de prisão. Já em 2019, atendendo à apelação da defesa de Sefer, a condenação voltou a ser anulada pela Justiça paraense, sob alegação de nulidade na investigação do réu, uma vez que este possuía prerrogativa de foro privilegiado ao tempo dos fatos e, assim, o caso não poderia ter sido aberto por determinação da justiça comum.

Em 2022, contudo, a condenação voltou a ser imposta pela Corte paraense, que anunciou a pena definitiva mantendo a aplicação de prisão, mas reduzindo para 20 anos de reclusão, e a indenização de R$ 120 mil.
Já em 2024, houve nova reviravolta, com a suspensão do cumprimento da sentença, quando a defesa de Luiz Afonso Sefer recorreu utilizando como argumento a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.447, que em 2023 entendeu ser necessária autorização judicial para investigar agentes com foro privilegiado, o que não teria sido observado no caso do ex-deputado, investigado quando ainda era parlamentar. O cumprimento da pena ficou suspenso até que o STF decida se o efeito da decisão sobre a ADI pode ser retroativo, o que beneficiaria Sefer.
Na decisão, o desembargador Roberto Gonçalves de Moura, vice-presidente do TJPA, determinou que o início do cumprimento da pena de Sefer deveria ser analisado novamente após o parecer do STF.
A manobra jurídica mais recente em favor de Luiz Afonso Sefer no TJPA começou a ser desenhada no dia 22 de janeiro deste ano. O desembargador Alex Centeno, primo do governador Helder Barbalho e nomeado por ele ao cargo, pediu vistas do processo para analisar recurso da defesa do ex-deputado, um agravo regimental solicitando que a 3ª Turma Criminal do tribunal analisasse novamente a alegação de nulidade das investigações que resultaram em sua condenação, novamente com o argumento da necessidade de autorização prévia.
O desembargador nunca havia tido contato com o processo antes. Em seu voto, proferido em sessão secreta no dia 19 de fevereiro, Centeno decidiu pela nulidade do processo e foi seguido pela maioria dos desembargadores, encabeçando, dessa forma, a reabertura da discussão sobre a anulação, contrariando decisão já determinada pelo STJ.
A nova decisão do TJPA acendeu um sinal de alerta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que chegou a abrir procedimento de apuração de infração disciplinar para averiguar possível “teratologia jurídica”, termo utilizado para tratar de decisões que se afastam de forma significativa dos fundamentos jurídicos, sendo consideradas absurdas. Os desembargadores que votaram pela nulidade chegaram a ser intimados a dar maiores explicações sobre seus votos.

Também diante da nova manifestação do TJPA, o Ministério Público ingressou com recurso, um embargo de declaração impetrado pelo procurador de Justiça Hezedequias Mesquita, em que exigia que fosse melhor esclarecida a decisão pela nulidade do processo.
Em 12 de março deste ano, após iniciada a apuração do CNJ, por maioria de votos, mais uma vez durante sessão secreta, os desembargadores rejeitaram o agravo regimental da defesa de Sefer, aceito na sessão do dia 19 de fevereiro, e decidiram que a Justiça paraense deveria apenas cumprir a determinação do STJ de dosar a pena do condenado. Dessa forma, o processo retorna ao STJ e ao STF para decisão sobre aplicação da pena.
Na mesma sessão, o desembargador Alex Pinheiro Centeno, relator do embargo de declaração do MP, também mudou de decisão sobre a nulidade do processo, considerando em seu voto que a vice-presidência do TJ do Pará, relatora do agravo regimental da defesa de Sefer, “não tem competência para avaliar a questão na atual fase processual, limitada ao juízo de admissibilidade de recursos especial e extraordinário”.
Como os desembargadores acabaram revendo a decisão favorável à nulidade do processo, o procedimento de apuração do CNJ foi arquivado por perda de objeto.
Com mais um retorno do processo às instâncias superiores, adia-se novamente o cumprimento da pena dada a Luiz Afonso Sefer, que agora está mais próximo de completar 70 anos de idade, quando a legislação vigente no Brasil, no artigo 115 do Código Penal, pode permitir a ele a redução pela metade do prazo para prescrever a pena, caso a defesa abra uma discussão sobre o tema e a Justiça aceite a tese.
Prazo de prescrição
Especialistas em Direito Penal e Direitos Humanos ouvidos pela CENARIUM explicam de que forma o ex-deputado Luiz Afonso Sefer poderia ser beneficiado com o avançar da idade.
Luana Tomás, professora da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA), diretora-adjunta do Instituto de Ciências Jurídicas e presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Pará (OAB-PA), destaca:
“Do ponto de vista técnico, o risco da prescrição da pena é real. Segundo o artigo 115 do Código Penal, o prazo de prescrição é reduzido pela metade, quando o réu completa 70 anos antes do trânsito em julgado da condenação. Se a decisão condenatória não for confirmada de forma definitiva antes dessa data, parte significativa da pena pode se tornar inexequível”.

Mailô Andrade, doutora em Direito Penal pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mestra em Direitos Humanos pela UFPA, diretora e roteirista do documentário Os sentidos do estupro na Amazônia (Lei Aldir Blanc Pará 2020) e autora do livro “Ela não mereceu ser estuprada”: a cultura do estupro nos casos penais (Lumen Juris, 2018), explica que a questão da redução pela metade do prazo prescricional por conta da idade do réu está claramente prevista no artigo 115 do Código Penal, que exige que o réu tenha completado 70 anos no momento da sentença condenatória em primeiro grau para que essa redução se aplique.
Mas a especialista ressalta que existe uma discussão sobre se essa previsão de redução do prazo de prescrição deve ser ampliada para que seja aplicada também em casos de sentença transitada em julgado, ou seja, no final do processo, quando é determinado o cumprimento e a execução da pena.
“No caso específico, se essa idade tivesse sido alcançada na sentença da Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes, que o condenou inicialmente a 21 anos, aí sim, a redução poderia ser aplicada [de forma mais direta]. Porém, há uma discussão jurídica sobre se essa previsão poderia ser interpretada de forma extensiva e também valer quando a idade é alcançada apenas no momento do trânsito em julgado da sentença, ou seja, quando a condenação se torna definitiva e a pena passa a ser executada”, afirmou Mailô.

A doutora em Direito Penal também acrescenta que o reconhecimento da prescrição pela idade avançada “não é automático” e que essa é uma matéria que precisa ser arguida pela defesa e analisada pelo Judiciário. “Existem decisões tanto do STJ quanto do STF que caminham em sentidos diferentes, então é um tema em aberto, ainda em debate”, afirma. Ela destaca que, além da possibilidade de reduzir o prazo da prescrição, “há também a discussão sobre o cumprimento da pena de formas alternativas, como a prisão domiciliar, especialmente em casos de réus com mais de 70 anos, por questões humanitárias e de política criminal”, disse.
Nilton Carlos Noronha Ferreira, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA), professor substituto da Faculdade de Direito da UFPA (FAD) e secretário-geral da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Pará (OAB/PA), afirma que, em casos como o de Sefer, é muito comum a estratégia de alongar as discussões em todas as instâncias visando à possível prescrição da pena. Mas ele chama atenção para o fato de que a redução pela metade do prazo prescricional não se aplicaria ao réu que completa 70 anos após a data da sentença, conforme se apreende do artigo 115 do Código Penal.

“No contexto do ex-deputado, o prazo prescricional não cairia de 20 para 10 anos em razão da idade do réu, o que não significa, por outro lado, que não haja risco de prescrição, considerando que já transcorreram 16 anos da condenação até a presente data”, explicou.
Noronha conclui, enfatizando que o crime de estupro de vulnerável possui pena máxima de 15 anos, de modo que o prazo prescricional seria de 20 anos (art. 109, I, do Código Penal). “Se o réu tinha menos de 21 anos na época do crime ou se tinha 70 anos ou mais na data da sentença, o prazo prescricional seria reduzido para 10 anos”, disse.
O especialista atenta para o fato de que, uma vez reconhecida a prescrição, ocorreria a extinção da punibilidade. “O Estado estaria impedido de impor uma pena em razão do transcurso do tempo. No caso do ex-deputado, a análise da prescrição considera a pena de 20 anos aplicada, tendo, portanto, o mesmo prazo prescricional de 20 anos (arts. 110 e 109, I, do Código Penal), a contar do trânsito em julgado da condenação”, finaliza.
Portanto, se aceita a tese de que a previsão de redução do prazo prescricional pela idade de 70 anos pode ser estendida para o momento final do processo, a pena de Luiz Afonso Sefer prescreveria em 10 anos. Como já se passaram 16 anos desde a condenação inicial, em 2010, ele estaria livre do cumprimento da pena, mesmo tendo sido condenado.
O jurista Nilton Carlos também explica que, mesmo com a sanção da Lei nº 15.160, que modifica o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848) para alterar a circunstância atenuante e vedar a redução do prazo de prescrição para os crimes que envolvam violência sexual contra a mulher, esta nova regra não se aplicaria ao caso de Luiz Afonso Sefer. “Por conta do que se chama de irretroatividade da lei penal mais gravosa. Uma lei penal nova só pode se aplicar a casos anteriores se for em benefício do réu, o que não é o caso”, explica. A sanção da nova lei foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) do dia 4 de julho deste ano, assinada pelo presidente em exercício, Geraldo Alckmin.
Estratégias de impunidade
Para os especialistas em Direito ouvidos pela reportagem, as manobras jurídicas da defesa do ex-deputado condenado, aceitas pelo TJPA, resultam em impunidade ao adiar indefinidamente o cumprimento da sentença e têm implicações para a sociedade.
“Como jurista e professor, ouço com frequência a afirmação de que o sistema penal brasileiro não funciona. Costumo rebater dizendo que ele funciona, e muito bem. Basta observar os altos índices de encarceramento e violência que o caracterizam, como mostrou o Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2024. No entanto, casos como o do ex-deputado Luiz Sefer me fazem reformular essa afirmativa para uma pergunta: ‘Não funciona para quem?’”, pondera Nilton Carlos.
De acordo com Nilton Carlos, fica evidente “como o sistema privilegia certos crimes em detrimento de outros, operando a partir de uma lógica de seletividade”. Nesse contexto, analisa o jurista, é possível distinguir dois grandes tipos de criminalidade: a comum e a dos poderosos. Para o jurista, a criminalidade comum é aquela prevista de forma mais clara no Código Penal e praticada por indivíduos sem grande influência social ou econômica. Já a criminalidade dos poderosos, os chamados “crimes de colarinho branco”, envolve agentes que contam com prestígio político e capital financeiro, o que frequentemente lhes garante tratamento diferenciado pela Justiça.
“No caso do ex-deputado, vemos um processo que se arrasta há mais de duas décadas, praticamente o mesmo tempo da pena inicialmente imposta. Mesmo com condenação em primeira instância e posterior confirmação pelo Superior Tribunal de Justiça, o sistema de Justiça não consegue, ou não quer, sustentar a pena. Enquanto isso, quem carrega o peso real dessa demora é a própria vítima, obrigada a ver seu agressor escapar, amparado pelos privilégios que o cercam”, afirmou Nilton Carlos.
O jurista aponta ainda que “as idas e vindas, as condenações e anulações, somadas ao fato de que Luiz Sefer segue em liberdade, mesmo tendo praticado um crime hediondo (Lei de Crimes Hediondos nº 8.072/1990, art. 1º, inciso VI), apenas evidenciam que esse processo é exceção, e não a regra dos rigores do sistema de (in)justiça”.
“Diante disso, a insegurança jurídica e a incerteza em torno desse caso não evidenciam apenas falhas pontuais. Revelam um sistema penal que, longe de ser ineficiente por acidente, é eficiente como projeto: segue funcionando muito bem para moer os pobres e blindar os poderosos”, concluiu Nilton Carlos.
Para Luana Tomás, “o caso Sefer revela as entranhas de um sistema de Justiça que frequentemente se dobra diante do poder político e econômico, mesmo diante de crimes gravíssimos, como o estupro de vulnerável”.
“A condenação do ex-deputado Luiz Sefer por estupro de uma criança de 9 anos foi uma conquista importante no enfrentamento à violência sexual contra crianças, mas a tentativa recente de anular a sentença, às vésperas de ele completar 70 anos, expõe as manobras jurídicas que favorecem a impunidade seletiva”, afirmou à CENARIUM.
De acordo com Luana, “a reviravolta judicial não pode ser lida de forma ingênua” e “evidencia como o sistema penal pode ser duro para muitos, mas estranhamente flexível para poucos”.
“Não se trata de mera disputa jurídica: está em jogo o direito à verdade, à justiça e à reparação da vítima, que foi revitimizada inúmeras vezes ao longo desses anos. Como presidenta da Comissão de Direitos Humanos da OAB, é meu dever afirmar que esse não é apenas um caso individual. Ele simboliza a falência de um modelo de Justiça que, ao invés de proteger os mais vulneráveis, se curva ao privilégio. Por isso, a importância de resistirmos”, disse.
Outra especialista que aponta nas manobras jurídicas uma estratégia para a impunidade é Mailô Andrade. “O caso de Sefer expõe os caminhos para a impunidade em crimes sexuais, uma ‘cultura do estupro’ que legitima violências e atua pela manutenção de um sistema de Justiça que suspeita das sobreviventes e escusa os estupradores”, disse.

Mailô Andrade avalia que o cenário de revitimização de sobreviventes de estupro pelas polícias e Judiciário é bem documentado. Para ela, as narrativas das vítimas são atacadas e acusadas de serem “falsas acusações” e elas, a maioria mulheres, “são taxadas de mentirosas, movidas por vingança ou interesses escusos de acabar com a reputação de ‘homens bons’, são transformadas em prostitutas”.
“Muitas sobreviventes afirmam que o processo penal é tão ruim quanto o estupro em si. Nesse sentido, no caso Sefer, a sobrevivente relatou mais de seis vezes os fatos no decorrer do processo, de forma coerente, harmônica, sem contradições, como parece ser importante ressaltar”, destacou Mailô.
A especialista ressalta que, embora os tribunais afirmem que “em crimes sexuais a palavra da vítima tem especial relevância”, os julgadores só costumam considerar a “palavra da vítima” quando corroborada por todas as outras provas aceitas e possíveis, entre laudos periciais que atestem a violência física e sexual e testemunhas. A especial relevância da palavra da vítima é um mito do estupro que se repete cotidianamente na jurisprudência brasileira, inclusive para justificar absolvições, afirma Mailô.

Ainda segundo a especialista, a absolvição por falta de provas é a realidade das decisões envolvendo crimes de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal) e estupro (art. 213 do Código Penal), e de outros delitos sexuais, no Brasil e no mundo. Embora o Brasil seja um dos países que mais prende no mundo, em casos de violências cometidas contra minorias políticas, como são os casos envolvendo violência de gênero e, portanto, o estupro, o princípio da presunção de inocência tem sido mobilizado para fundamentar decisões em processos relativos a esses casos de uma maneira distinta de como funciona nos crimes contra o patrimônio ou tráfico de drogas.
“Decisões judiciais que legitimam a violação sexual têm efeitos concretos no cotidiano das pessoas e disputam narrativas para impor uma verdade sobre estupro que não condiz com a experiência real das vítimas. Se o estupro é um instrumento de controle social, do qual o ‘medo do estupro’ e da descrença sobre o estupro exercem papel fundamental na manutenção das desigualdades de gênero, passa-se uma ordem implícita que determina os lugares que se pode ir, e se, e que, mulheres podem ser, inclusive a própria ‘vítima’”, afirma Mailô.
Para a mestra em Direitos Humanos, “é importante denunciar a condução dos processos e a revitimização imposta a quem já sofreu tanto, mas que segue na luta pelo reconhecimento da sua dor e de que um mal imenso, irreparável, horrível, foi causado”.
O assunto foi tema de capa e especial jornalístico da nova edição da REVISTA CENARIUM. Acesse aqui para ler o conteúdo completo.
