Água limpa leva esperança às palafitas de Manaus, maior metrópole da Amazônia
Por: Alinne Bindá
29 de outubro de 2025
Água tratada chega às palafitas de Manaus e transforma vidas entre os desafios da cheia e da seca (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
MANAUS (AM) – No bairro Educandos, um dos mais antigos de Manaus (AM), a maior metrópole da Amazônia, casas de madeira se equilibram sobre estacas à beira do Rio Negro e se transformam em palafitas – construções erguidas em áreas alagadas ou ribeirinhas. Das passarelas suspensas, vê-se, de um lado, os prédios que crescem sobre o asfalto e, do outro, o movimento do banzeiro. O ar carrega o cheiro da água doce misturado ao de combustível das embarcações. Agora, um novo ruído se soma aos sons do bairro: o das torneiras em funcionamento.
Por muito tempo, o Educandos, na Zona Sul da capital amazonense, viveu da água que o rio trazia: barrenta, imprevisível, às vezes generosa, às vezes cruel. Quando subia demais, na enchente, invadia as casas; quando descia, na seca, deixava o lixo e a lama. Hoje, a água chega por tubos suspensos, acompanhando o sobe e desce das marés. O fluxo constante representa mais do que um serviço: é o retorno de um direito.
Morador observa o igarapé do alto da passarela de madeira, no Educandos, onde a água tratada chega às palafitas(Ricardo Oliveira/CENARIUM)
As passarelas, que oscilam a cada passo, conduzem a um labirinto de moradias sobre o espelho d’água. Pelas frestas do assoalho, o igarapé ainda corre, mas, agora, há outra correnteza: a da água tratada que jorra das torneiras. Varais coloridos cruzam os becos, crianças brincam descalças sobre o madeirame, e as famílias aprendem a conviver com uma nova rotina de limpeza, banho e cuidado.
Morador do bairro há mais de três décadas, Vanderlan Rodrigues, de 39 anos, lembra do tempo em que as enchentes traziam doença e desespero. “Quando enche, a água traz cachorro morto, gato morto, fezes humanas. Isso fazia as pessoas ficarem doentes o tempo todo. Hoje, com água tratada na torneira, a esperança voltou pra gente”, diz, enquanto o filho observa um porco se revirando na lama sob a casa.
O filho de Vanderlan observa o animal na lama sob a casa: cenas ainda comuns na paisagem das palafitas (Ricardo Olivera/CENARIUM)
Vanderlan abre a torneira e deixa a água correr sobre as mãos, como quem confirma que a mudança é real. O abastecimento, contudo, exige vigilância. Os tubos que atravessam o igarapé precisam ser levantados quando o nível do rio sobe, para evitar que a água poluída penetre na rede.
“Os técnicos vêm sempre. Inspecionam, trocam os canos, levantam os ramais. Se o cano fica submerso, há risco de epidemia”, explica Vanderlan, reconhecendo o esforço coletivo que mantém o sistema funcionando. “Eles garantem que a água chegue limpa, e é isso que importa”, complementa ao ressaltar que a manutenção constante da rede é essencial para assegurar a qualidade da água.
Em banheira improvisada, Vanderlan Rodrigues recorda o tempo das cheias e celebra a chegada da água limpa à torneira (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
O desafio de levar água sobre o rio
Por trás desse cotidiano, há uma engenharia que desafia a geografia amazônica. As redes suspensas, implantadas pela concessionária Águas de Manaus, responsável pelos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto na capital amazonense, foram adaptadas ao sobe e desce das águas e às estruturas frágeis das palafitas.
“Essas áreas foram mapeadas, e quando começa a enchente, as ligações são suspensas e elevadas. No Educandos, no Beco Inocência e na Manoel Urbano, atendemos 500 famílias e 150 ramais, com 800 metros de rede aérea instalada”, explica o gerente comercial da empresa, Paulo Ricardo Silva. “É um trabalho desafiador, mas seguimos comprometidos em levar água limpa, com segurança e dignidade, para cada morador”, afirma.
Em área de palafitas, mulher toma banho sob o chuveiro após a chegada da água encanada (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
Beco Nonato: o pioneirismo no tratamento de esgoto
No Beco Nonato, bairro Praça 14, foi implantada a primeira rede aérea de coleta e tratamento de esgoto do País em área alagável. Os canos suspensos conduzem os resíduos domésticos até a Estação de Tratamento do Educandos, evitando a contaminação das águas.
Moradora do local, Mikaelly Dirane, de 32 anos, descreve a transformação: “Antes, o esgoto ia direto pro igarapé, por baixo das casas. Hoje, com a rede instalada, tudo melhorou. A gente paga só dez reais na tarifa, antes era até cinquenta. Isso muda tudo na nossa vida.”
Mikaelly Dirane, moradora do Beco Nonato, celebra a melhoria na saúde e no orçamento da família (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
Antes da implantação do sistema de saneamento básico, as áreas do Educandos e do Beco Nonato conviviam com a ausência de infraestrutura e o contato direto com os igarapés. O esgoto doméstico era lançado sob as palafitas, contribuindo para a contaminação da água. Nos períodos de cheia, a elevação do nível do rio fazia com que dejetos e resíduos fossem levados para o interior das casas; na seca, o acúmulo de lama deixava odores persistentes e agravava as condições sanitárias.
A mudança ocorreu com a adoção de uma solução de engenharia adaptada ao ambiente fluvial. O sistema de redes aéreas de esgoto foi desenvolvido para acompanhar a variação do nível do rio, com tubos suspensos que direcionam os dejetos até a Estação de Tratamento do Educandos. O funcionamento depende de monitoramento contínuo: equipes técnicas realizam inspeções periódicas e ajustam a altura dos ramais conforme a oscilação das águas, evitando infiltrações e garantindo a eficiência do sistema.
Direito universal e obrigação do Estado
Garantir água tratada e saneamento básico é um direito humano essencial, reconhecido pela Constituição Federal e por tratados internacionais. Em 2024, o Senado aprovou uma emenda constitucional que incluiu o saneamento básico entre os direitos sociais, ao lado de saúde, educação e moradia, reforçando a obrigação do Estado de assegurar o acesso universal a esses serviços.
No plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecem o acesso à água potável e ao saneamento como condições fundamentais para a vida digna. Universalizar o saneamento é, portanto, uma medida de equidade: reduz desigualdades, melhora indicadores de saúde pública e impulsiona o desenvolvimento sustentável.
Funcionário da concessionária Águas de Manaus atua em estação de tratamento (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
Avanços e desafios em Manaus
Em Manaus, mais de 2 milhões de habitantes dependem do sistema de abastecimento operado pela concessionária Águas de Manaus. Desde 2018, foram investidos cerca de R$ 1,6 bilhão em ampliação da rede, modernização de sistemas e implantação de soluções adaptadas à geografia local, especialmente em áreas de palafitas e margens de igarapés. A cidade alcançou 97% de cobertura de água tratada, segundo dados do Instituto Trata Brasil, índice acima da média das capitais da Região Norte, de 64%, e próximo à meta nacional estabelecida para 2033.
“A universalização em Manaus tem dois caminhos: o da água e o do esgoto. O da água já foi alcançado, inclusive nas palafitas. E até 2033, iremos universalizar o esgoto. Atualmente, temos 34% de cobertura”, explica o gerente comercial da Águas de Manaus, Paulo Ricardo Silva.
Funcionários da Águas de Manaus mostrando a qualidade da água (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
O avanço no tratamento de esgoto ocorre por meio de projetos que combinam engenharia tradicional e soluções descentralizadas, adequadas às condições de terreno e variação do nível dos rios. Nessas áreas, redes aéreas e sistemas suspensos permitem manter a continuidade do serviço durante o período de cheias, reduzindo o risco de contaminação.
Mesmo em um contexto de grandes desafios estruturais, Manaus ocupa posição de destaque na Região Norte em indicadores de saneamento. Os investimentos resultaram na redução das perdas de água, na expansão de redes de esgoto e na melhoria da qualidade do abastecimento, elementos essenciais para consolidar políticas públicas voltadas à universalização do acesso e à saúde das populações ribeirinhas e urbanas.