Aldeias indígenas onde menina de 11 anos foi abusada sexualmente e morta vivem favelização

Missionários e lideranças indígenas discutem a distribuição de cestas para o próximo mês na aldeia Bororó, em Dourados (MS) (Rafael Ribeiro/Folhapress)

Com informações da Folhapress

DOURADOS (MS) – Exceto pelas poucas plantações de mandioca existentes e alguns moradores usando adereços típicos dos indígenas, a aldeia Bororó, em Dourados (MS), não difere muito de favelas existentes no País. Bororó ganhou notoriedade após Raíssa da Silva Cabreira, 11, da etnia guarani-kaiowá, ter sido estuprada e morta pelo próprio tio, Elinho Arévalo, 34, e outros quatro acusados, três deles adolescentes. Todos foram detidos pelo crime ocorrido no dia 9 de agosto. Três dias depois, Arévalo foi achado morto em um presídio.

Veja também: Após criança indígena ser morta e abusada sexualmente por cinco homens, lideranças pedem justiça

PUBLICIDADE

Raíssa morava com o tio em um dos barracos da Bororó desde os 5 anos. Sempre conviveu com o alcoolismo de Arévalo, que, segundo a polícia, teria confessado estuprar a sobrinha constantemente após as bebedeiras.

A reportagem esteve na quinta-feira, 19, no local, onde violência, miséria e degradação social fazem parte da rotina. As moradias são barracos feitos com pedaços de madeira, cobertos com sapé ou restos de telhas, piso de chão batido e muitas vezes com só um cômodo, onde moram até 15 pessoas.

Morar com um parente é o destino de quase todos os filhos mais velhos dos indígenas. Conforme os irmãos menores chegam, acabam morando com outros familiares para abrir espaço nos barracos.

A poucos metros do local onde Raíssa morava com o tio, os pais dela vivem em um barraco ainda menor com as outras duas filhas mais novas. Não existem eletrodomésticos, às vezes nem sequer energia elétrica. Água encanada também é artigo raro.

Nos fogões improvisados com tijolos em frente às casas prepara-se a comida, sempre com pouca variedade. Sem ter local para armazenamento, o consumo de proteína animal é praticamente inexistente. Come-se o que se planta e não é vendido. Ou seja, praticamente só mandioca.

A ajuda do Estado ou de entidades como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é essencial. Sem isso, Gisélia Alves, 37, afirma não ter como alimentar os filhos. “É a vida que a gente tem”, disse.

Mãe de sete filhos, ela fica em casa com os cinco menores, enquanto o marido e os dois mais velhos cuidam de uma pequena lavoura de manhã e saem à tarde de carroça para tentar vender a produção. Por causa da rotina, não estão na escola.

A casa, de poucas tábuas no teto e revestida com uma lona, não tem armários. Roupas e utensílios ficam empilhados no chão de terra, ao lado dos três colchões onde todos dormem. O cheiro é forte, pois não há banheiro. Banhos são tomados com água de um poço artesiano.

“Faz tempo que estamos vivendo um em cima do outro. Tem barraco que abriga até 15 pessoas e isso é desumano. Nem bicho vive assim”, disse o líder da Bororó, Gaudêncio Benitez, 41.

Bororó e a vizinha Jaguapiru somam 20 mil habitantes. Até a década de 1990, formavam um território afastado e até certo ponto isolado do perímetro urbano de Dourados. Desde 2012, o processo de urbanização autorizado pela prefeitura cercou as aldeias com condomínios fechados e bairros de padrão médio, acentuando a condição precária do local.

Muitos dos indígenas douradenses são proibidos de entrar nos comércios da cidade. Estabelecimentos próximos das aldeias seguram os cartões do Bolsa Família e outros benefícios com a alegação de que é uma forma de segurança para evitar calotes. O Ministério Público Federal processa quatro comerciantes por essa prática contra 117 famílias das aldeias.

Há também o preço. Alimentos, vestuário e produtos de higiene pessoal nos novos bairros vizinhos chegam a custar cinco vezes mais para os indígenas.

“A comunidade guarani-kaiowá não conseguiu superar essa situação de miséria devido às inúmeras mudanças que ocorreram na sua cultura. Antigamente produziam tudo para suprir suas necessidades, mas a comunidade cresceu e nem todos têm o espaço necessário e adaptado para sobreviver”, diz a assistente social Erica Chistiane Gabriel, do Centro de Referência de Assistência Social da Bororó.

Para compensar a situação precária, o caminho escolhido algumas vezes é o vício. Bebida alcoólica para os mais velhos, vendida de maneira escondida em razão da proibição da Fundação Nacional do Índio (Funai) e fiscalização policial. Para os mais novos, drogas, como cocaína.

“Ao longo da história da colonização do Brasil, o álcool foi utilizado como ferramenta de guerra para vencer os índios, principalmente após a vinda da família real portuguesa para o Brasil. Porém, a disseminação, por parte do Estado, para subjugar os índios, com o álcool, trouxe para dentro das comunidades consequências nefastas como o aumento da violência”, diz o psiquiatra Juberty Antônio de Souza, que há 20 anos trabalha com a questão indígena no estado.

Segundo dados do Cimi, Mato Grosso do Sul registrou dez casos de violência sexual em aldeias em 2019. No ano passado foram quatro e, em 2021, três. Dados de registros de ocorrência da Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública (Sejusp) apontam 23 assassinatos nas regiões das aldeias neste ano e 107 casos de agressões, que incluem brigas, suicídios, espancamento e estupros.

“Tem dia que somos chamados para atender até 15 casos de violência doméstica. Quase todos provocados por bebedeiras”, diz o líder da Bororó.

Por meio de nota, o governo de Mato Grosso do Sul, sob comando de Reinaldo Azambuja (PSDB), afirmou que o estado tem diversas ações direcionadas à população indígena, como o Vale Universidade Indígena e a distribuição de 18 mil cestas básicas mensalmente, que atendem mais de 70 mil indígenas.

Ainda conforme o governo, a PM faz policiamento comunitário nas comunidades indígenas. Na educação, diz atender as oito etnias do estado (ofaié, guató, kadiweu, kiniquinau, guarani, kaiowá, atikun e terena), inclusive com a língua materna na matriz curricular.

Também por meio de nota, a Funai disse que a Secretaria Especial de Saúde Indígena é quem tem competência institucional para coordenar e executar a política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas e que, durante a pandemia, tem atuado para garantir a segurança alimentar, a prevenção ao contágio pela Covid-19, a proteção territorial e a promoção da autonomia dos indígenas da região.

“Somente no mês de agosto de 2021 foram entregues mais de 9.000 cestas básicas às famílias residentes nas aldeias Jaguapiru e Bororó”, diz.

Além disso, a Funai diz fazer o acompanhamento de questões relacionadas ao direito à convivência familiar e comunitária, situações de violação a direitos de crianças e adolescentes indígenas, bem como promover uma interlocução com União, estados e municípios.

Sobre casos de violência contra indígenas, a Funai afirmou que acompanha subsidiando tecnicamente a atuação dos órgãos de segurança pública competentes.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.