Amazonas lidera registros de indígenas em isolamento voluntário


Por: Ana Cláudia Leocádio

14 de março de 2025
Vista aérea de indígenas isolados no Vale do Javari, no Amazonas (G.Miranda/Funai/Survival)
Vista aérea de indígenas isolados no Vale do Javari, no Amazonas (G.Miranda/Funai/Survival)

BRASÍLIA (DF) – O Estado do Amazonas lidera a concentração dos povos indígenas isolados, principalmente no Vale do Javari, na fronteira com o Peru, com 48 referências. É o que consta no livro “Povos Indígenas Livres/Isolados na Amazônia e Grande Chaco”, lançado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), nesta quinta-feira, 13, em Brasília. Conforme a publicação, o Cimi registrou a presença de 119 desses grupos que vivem em isolamento, sendo apenas um localizado fora da Amazônia Brasileira.

“Povos Livres” é como a Equipe de Apoio aos Povos Livres do Cimi (Eapil/Cimi) conceitua os Povos Indígenas em Isolamento Voluntário (PIA). É uma “forma de enfatizar a determinação por autonomia e autodeterminação expressa por estes povos por meio do distanciamento do mundo não indígena”, conforme a entidade.

Evento de lançamento do livro do Cimi (Ana Cláudia Leocádio/CENARIUM)

Dos 119, o Amazonas concentra 48 registros, sendo um compartilhado com o Pará, que, segundo o Cimi, tem 17 povos em situação de isolamento catalogados. O Estado de Rondônia apresenta 16 grupos, seguido de Roraima, com nove. O Maranhão tem oito apontamentos, enquanto o Acre registrou seis e Amapá, dois. O Tocantins tem apenas um registro.

O livro

A publicação foi organizada pelos membros da Eapil/Cimi, Guenter Francisco Loebens e Lino João de Oliveira Neves, com apoio da Rede Eclesial Pan Amazônica (Repam). A publicação de 532 páginas é estruturada em cinco partes, com enfoque na realidade da América do Sul.

No total, são 29 artigos produzidos por 45 autores, que apontam o contexto de ocupação e ataques aos povos isolados ao longo da história, a situação atual de ameaças àqueles a estes grupos, que voluntariamente preferem se manter fora de contato com os não indígenas, um direito que, de acordo com os autores, deve ser respeitado.

A lista de 119 povos isolados no Brasil da Eapil/Cimi é diferente da produzida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), isto porque a organização católica mantém um trabalho independente e leva em consideração levantamentos de campo e de informações colhidas da autarquia federal e de outras entidades indigenistas. A Funai registrou 114 povos isolados, com 28 reconhecidos apenas.

Conforme o Cimi, quase um terço desses grupos, 37 no total, está localizado em áreas sem nenhuma providência de proteção, como restrição de acesso, demarcação territorial e proteção efetiva da Funai.

Quase um terço dos indígenas isolados está localizado em áreas sem nenhuma providência de proteção (Ana Cláudia Leocádio/CENARIUM)
Situação no Amazonas

No Amazonas, segundo os autores, existe o maior número de registros de povos indígenas isolados, concentrados principalmente na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, região fronteiriça com o Peru, com mais de 15 referências de presença. Destaque para os indígenas Matís, de recente contato, e os Korubo, conhecidos como “caceteiros”. Ambos foram alvos de contato forçado na década de 1970, segundo a publicação.

Para os autores, as Bases de Proteção Etno ambiental da Funai (Bapes) na TI Vale do Javari têm se mostrado insuficientes para inibir a invasão de garimpeiros, madeireiros, pescadores e caçadores ilegais. Foi naquela região que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Philips foram assassinados, em junho de 2022.

A publicação também destaca diversos registros de presença de indígenas isolados na região Sul do Estado e a preocupação com o crescimento do desmatamento em torno das rodovias Transamazônica (BR-230) e da BR-319.

Entre os mais ameaçados estão os indígenas isolados da TI Tenharim, na área de influência do projeto de construção da hidrelétrica do Machadinho, os isolados Katawixi, cujo território vem sofrendo violento processo de desmatamento ilegal e um grupo indígena isolado, presumivelmente Juma, será impactado pelo asfaltamento da BR-319”, afirma o livro.

Cerimônia teve presença de povos indígenas (Ana Cláudia Leocádio/CENARIUM)
Visão dos organizadores

Para Guenter Francisco Loebens, um dos organizadores do livro, a obra traz uma perspectiva de mostrar a realidade de onde estão os povos livres, quais seus direitos e as ameaças que sofrem.

De acordo com o levantamento publicado, na América do Sul há 185 referências de povos indígenas isolados, dos quais apenas 66 são reconhecidos pelos estados nacionais. “Os demais vivem na invisibilidade sem nenhuma garantia de proteção”, afirmou Loebens.

No Brasil, a Funai registra a presença de 114 grupos, mas apenas 28 são reconhecidos, o que deixa 86 povos sem nenhuma proteção do Estado brasileiro. Ainda segundo Loebens, o trabalho mostra ainda que mais de 30 povos são transfronteiriços, vivendo em regiões de fronteira, o que demanda esforços de cooperação entre os países para a proteção desses indivíduos.

O livro “Povos Indígenas Livres/Isolados na Amazônia e Grande Chaco” foi lançado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) (Ana Cláudia Leocádio/CENARIUM)

Conforme o missionário, todos os avistamentos reportados ao Cimi são comunicados à Funai para providências. “Porque são sempre regiões onde tem mineração ilegal ou garimpo, tem caça ou pesca ilegal ou tem narcotráfico. Então, são todas situações urgentes. E a gente fica extremamente preocupado”, afirmou Loebens.

O membro do Cimi explica a escolha da capa do livro, que traz a foto do “Índio do Buraco”, último sobrevivente do povo Tanaru, em Rondônia, que morreu em 2022, dando como extinta sua etnia.

Para o outro organizador da publicação, Lino João de Oliveira Neves, a mensagem central do livro, além de dar visibilidade aos indígenas que vivem em isolamento, quer também reafirmar o direito que eles têm de não serem contatados, mas nem por isso perderem o direito de serem reconhecidos e protegidos pela política estatal. “Respeitar o direito deles de continuarem existindo como grupos organizados”, afirmou.

Neves lembra a tragédia que foi a política do estado brasileiro de contato forçado, com a premissa de tornar os indígenas brasileiros de fato, durante o processo de expansão e ocupação dos espaços do país, situação que foi revertida com a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. Antes, em 1987, começou a ser implementada uma nova política indigenista de proibição do contato forçado.

Para o secretário Geral da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Ricardo Hoepers, o livro coloca por terra um ditado popular que diz: quem não é visto não é lembrado, porque agora a sociedade terá acesso às informações, inclusive com a localização de cada grupo referenciado. O Cimi faz parte da estrutura da CNBB.

O evento de lançamento do livro também contou com a presença de indígenas das etnias Pataxó e Tupinambá, da Bahia, que estão em Brasília para cobrar a emissão das portarias declaratórias das TIs Barra Velha do Monte Pascoal, Tupinambá de Olivença e Tupinambá de Belmonte, e avanço na demarcação da TI Comexatibá, localizadas nas regiões sul e extremo sul da Bahia. Eles também querem a declaração de inconstitucionalidade da Lei do Marco Temporal, 14.701/2023.

Panorama nos demais Estados, segundo o livro

Roraima

No Estado de Roraima, o Cimi catalogou vários grupos isolados no interior da TI Yanomami, ameaçados pela invasão de garimpeiros ilegais desde a década de 1980, onde foram registrados assassinatos de indivíduos sem contato.

Outro povo indígena isolado localizado no Estado é o conhecido por Pirititi, na divisa com o Amazonas, onde operações dos agentes ambientais e de segurança do governo federal já apreenderam madeira ilegalmente e constatou grandes área de desmatamento. O local chegou a ter portaria da Funai de restrição de uso, mas desde 2022, não houve renovação do instrumento legal, segundo os autores.

Acre

Ainda de acordo com a publicação, no Acre, a presença de diversos povos isolados é registrada na fronteira do Brasil com o Peru, onde ambos os países dividem território com etnias como os Manchineri, Yaminawa, Ashaninka, Huni Kuin (Kaxinawá), Arara do Acre e Nukini. Considerados transfronteiriços, estão os Mashco Piro, localizados na região dos altos rios Purus, Acre, Iaco e Chandless e
nas cabeceiras do alto Rio Piedras e Tahuamanu.

Rondônia

Os autores de “Povos Livres” consideram que Rondônia “é um dos estados amazônicos em que a violência atingiu os povos indígenas Isolados de forma mais intensa e brutal nos últimos 60 anos, com a construção de muitas estradas e o avanço dos projetos de colonização promovidos pelas políticas desenvolvimentistas governamentais”

Grupos de extermínio agiam impunemente a serviço de grileiros de terras públicas, madeireiros e fazendeiros para fazer a “limpeza do território” e sumir com todos os vestígios de presença indígena que
pudessem ensejar alguma medida de proteção territorial pelo Estado”
, diz um trecho da publicação.

Citam como sobreviventes dessas violências, os oito sobreviventes dos Povos Akuntsu e Kanoê, na TI Omerê, e o “índio do Buraco”, o último remanescente de seu grupo, que faleceu recentemente e agora discute-se o que fazer com sua terra.

Cinco referências de presença de indígenas isolados foram registradas na região norte de Rondônia e sul do Amazonas, na área de influência das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, inauguradas respectivamente em 2012 e 2016.

Três povos encontram-se em risco na região central do Estado, segundo o livro,
localizados no interior da TI Uru-Eu-Wau-Wau, onde estima-se mais de mil pessoas o número de invasores ao território.

Mato Grosso

As particularidades que envolvem o Estado do Mato Grosso, com intensa presença do agronegócio, os altos índices de desmatamento e conflitos fundiários, também ameaçam povos isolados registrados ali.

O povo Piripkura sofreu o derradeiro massacre, na década de 1980, e atualmente contra com apenas três sobreviventes, dois vivendo em isolamento. Mesmo com portaria da Funai de restrição de uso, a TI Piripkura continua sendo invadida. Outro povo indígena isolado Tupi-Kawahiva nesta mesma região vive na TI Rio Pardo sob ameaça de madeireiros e grileiros, que não respeita as restrições impostas pela Funai.

Pará

Segundo Estado da Amazônia Brasileira com maior número de registros de povos isolados, a maior ameaça a esses grupos no Pará ocorre na bacia dos rios Tapajós e Xingu, segundo o Cimi.

São várias as informações sobre a presença de indígenas isolados no médio e alto rio Tapajós, na TI Munduruku, na TI Sawre Muybu do Parque Nacional da Amazônia e nas proximidades da BR-230, no município de Itaituba. Existem relatos testemunhais consistentes de indígenas Munduruku, Sateré-Mawé e ribeirinhos sobre vestígios da presença de isolados e até mesmo de avistamentos”, afirma os autores no livro.

Uma das preocupações, é a ausência da Funai para as investigações comprovatórias sobre a presença desses povos na região e para a adoção das necessárias medidas de proteção territorial.

Maranhão e Tocantins

No Maranhão existem registros de vários grupos Awá isolados, que já ocupam terras demarcadas (TI Araribóia e TI Krikati), mas ainda enfrentam as ameaças de exploração ilegal de madeira. “Dos 415 mil hectares, cerca de 35% (185 mil hectares) já foram completamente arrasados pela exploração madeireira”, afirmam.

Os indígenas Tentehara/Guajajara da TI Araribóia criaram até um projeto, chamado “Guardiões da Floresta”, para combater a invasão dos madeireiros, mas as invasões e ameaças seguem ocorrendo.

Último Território a se tornar Estado, no Tocantins há a referência a apenas um povo indígena isolado, localizado na Ilha do Bananal, na TI Inãwébohona, que ainda não contam com as medidas de proteção da Funai.

Leia também: Indígenas alertam sobre impactos da BR-319: ‘Território destruído’
(*) Editado por Izaías Godinho

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