Amazônia tem ‘apagão’ de dados sobre homicídios, alerta Instituto Sou da Paz


Por: Fred Santana

06 de outubro de 2025
Amazônia tem ‘apagão’ de dados sobre homicídios, alerta Instituto Sou da Paz
Levantamento revela um cenário particularmente preocupante nos Estados da Amazônia (Reprodução/Getty Images)

MANAUS (AM) – Em 2023, 36% dos homicídios registrados no Brasil foram esclarecidos até o fim de 2024, de acordo com o estudo “Onde Mora a Impunidade”, do Instituto Sou da Paz. O levantamento revela um cenário preocupante nos Estados da Amazônia, onde falhas na coleta de dados, ausência de padronização e fragilidade dos sistemas de informação comprometem o monitoramento da violência letal e a formulação de políticas públicas.

Segundo a coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Beatriz Graeff, o problema não se resume a deficiências técnicas ou administrativas. Ela explica que o principal obstáculo está na falta de prioridade política para a gestão e qualificação das informações. Em suas palavras, “o principal entrave para qualificar esses dados não é exatamente administrativo ou tecnológico, mas uma decisão política de priorizar o monitoramento do impacto dos processos em termos de serviço à sociedade”.

Os números usados em alguns relatórios são majoritariamente extraídos de plataformas com finalidade puramente burocrática (Reprodução/Freepik)

A pesquisadora destacou que, embora o País tenha avançado na modernização dos sistemas de informação, a forma como os dados são coletados ainda impede uma análise efetiva. Os números usados no relatório, por exemplo, são majoritariamente extraídos de plataformas com finalidade puramente burocrática, voltadas para o acompanhamento processual e sem tratamento estatístico. Por isso, campos essenciais — como data do crime, perfil da vítima e andamento do processo — continuam ausentes em grande parte dos Estados da Amazônia.

Nos Estados que se destacam positivamente, como o Acre, há experiências mais estruturadas de acompanhamento de informações. O relatório menciona o Observatório de Análise Criminal do Núcleo de Apoio Técnico do Ministério Público do Acre como exemplo de iniciativa que busca integrar dados e produzir análises próprias sobre homicídios.

Segundo Graeff, essa diferença está justamente na intenção dos órgãos em produzir dados para monitoramento. “Onde há um núcleo dedicado a isso, os dados são tratados e qualificados. Na maioria dos Estados, no entanto, eles são apenas extraídos automaticamente, sem preocupação com qualidade ou contexto”, explicou.

Essa desigualdade entre Estados amazônicos ficou evidente na edição mais recente da pesquisa. Acre e Roraima conseguiram fornecer dados sobre o sexo e a idade das vítimas, enquanto Amapá e Pará ficaram de fora do indicador nacional por ausência de informações completas.

No Acre, 70% das vítimas de homicídio em 2023 eram pessoas pretas ou pardas, proporção semelhante à registrada no Piauí (77%), o que reforça a concentração da violência letal entre jovens negros e periféricos.

Graeff explica que o gargalo começa ainda na fase inicial da investigação, dentro das delegacias e órgãos de segurança pública. “A fragilidade é muito grande nos dados sobre raça, porque esse não é um campo de preenchimento obrigatório. Mesmo quando é, a identificação racial nem sempre segue as recomendações do IBGE ou do Estatuto da Igualdade Racial. Além disso, muitos profissionais sentem resistência em coletar essa informação”, observou.

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Ela lembra também que, no sistema de Justiça, há uma barreira de natureza conceitual. Muitos operadores defendem que a “justiça deve ser cega”, e que, portanto, não se deve registrar informações de raça, idade ou gênero dos envolvidos.

Para Graeff, essa ideia, embora pareça neutra, acaba mascarando desigualdades reais. Ao não coletar esses dados, afirma, o sistema “deixa de enxergar como as estruturas judiciais impactam de maneira desigual diferentes grupos sociais”.

Memorial à vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, assassinados em 2018 (Tomaz Silva/Agência Brasil)
Informações qualificadas

O Instituto Sou da Paz defende que a melhoria dos registros depende, sobretudo, de pressão social por transparência. Graeff enfatiza que a sociedade precisa exigir a produção e a qualificação de informações sobre homicídios. “É uma prestação de contas. A sociedade tem o direito de monitorar, estudar e compreender os fatores que impactam a prestação dos serviços da Justiça”, disse.

A ausência de um Indicador Nacional de Elucidação de Homicídios é, segundo a pesquisadora, um dos principais vazios institucionais do País. Ela considera alarmante que os órgãos públicos ainda não tenham uma ferramenta capaz de medir a eficiência da resposta do estado aos crimes contra a vida. Para a coordenadora, é impossível melhorar o desempenho das instituições sem medir sua eficácia.

Graeff ressalta, ainda, que o impacto da elucidação vai além da responsabilização individual. O esclarecimento de homicídios tem efeito direto na redução de novos crimes, ao interromper ciclos de violência e vingança. “Responsabilizar o autor de um homicídio impede que ele cometa novos crimes e reduz a sensação de impunidade, que é um fator que desestimula a confiança da sociedade no Estado”, explicou.

Para ela, a criação de um indicador oficial não seria apenas uma ferramenta de monitoramento, mas também um instrumento de transformação da realidade. “A própria existência do indicador já seria o primeiro passo para melhorar a qualidade da resposta do Estado e reduzir as taxas de homicídio — especialmente em áreas como a Amazônia, onde esses índices ainda estão crescendo”, concluiu.

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Editado por Marcela Leiros

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