Ameaçados por malária e fome, ianomâmis contam com ‘ajuda’ de garimpeiros ilegais, diz liderança

MPF afirma que há mais crianças ianomâmis desnutridas do que saudáveis. (Reprodução/O Globo)
Com informações do Infoglobo

RIO — Fome, morte, abandono. Esses têm sido elementos presentes na realidade dos povos ianomâmis, nos Estados de Roraima e Amazonas. Uma crise que, por si só, já seria grave com o avanço do garimpo ilegal, começa a ganhar contornos cada vez mais dramáticos à medida que um novo surto de malária — problema conhecido da região — tem resultado na morte sobretudo de crianças no território, de acordo com lideranças. Só da semana passada para cá, duas teriam morrido desnutridas, em geral, uma consequência da doença. Sem assistência, os indígenas têm recorrido a garimpeiros ilegais para obter ajuda e remédios.

Em meio a um cenário onde a Fundação Nacional do Índio (Funai) não permitiu ajuda humanitária por parte de médicos e demais profissionais de saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sob a alegação de que as tribos precisam ser preservadas de contato externo por conta da Covid-19. Mas  há relatos de que alguns indígenas, em desespero, têm rompido a “barreira” e pedido ajuda justamente aos garimpeiros ilegais — que sequer deveriam estar ali — devido à ausência do governo federal. 

“A meninazinha (sic) dela tá ruim, tá bem magrinha. Ela queria que eu desse remédio, mas eu não tenho mais remédio, porque eles vêm aqui direto atrás de remédio comigo. Já acabou o meu remédio”. A gravação obtida pelo GLOBO, e que não pode ser reproduzida por questões de segurança quanto à identificação do interlocutor, foi enviada por um garimpeiro a representantes do povo ianomâmi na região de Parima.

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A pessoa afirma que tem ajudado constantemente indígenas que aparecem desesperados atrás de medicamentos. Nessa ocasião — recente — ele havia ajudado uma mãe indígena, que foi atrás de ajuda com a sua filha em estado crítico. “Se vocês forem buscar, vem logo, porque a meninazinha (sic) tá muito ruim mesmo”, conclui.

Só nessa segunda-feira, 22, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista (RR), há 17 crianças ianomâmis internadas no Hospital da Criança de Santo Antônio, vindas de diferentes regiões do território.

Desde o início do mês, já houve movimentação, tanto do Ministério Público Federal (MPF), quanto do Supremo Tribunal Federal (STF) , por explicações e ações efetivas para frear a crise que atinge os povos ianomâmis. No último dia 16 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso exigiu que, em cinco dias, o governo federal prestasse esclarecimentos sobre uma série de questões — como informações nutricionais, de acesso a água potável, saúde, medicamentos e combate à Covid-19. Até o fechamento dessa reportagem, ainda não havia sido protocolada uma resposta.

O MPF, por sua vez, recomendou em ofício publicado, também no último dia 16 de novembro, que o Ministério da Saúde reestruture em 90 dias o atendimento aos povos indígenas ianomâmis. No texto, o órgão ressalta que, apesar de ter recebido R$ 190 milhões para assistência à saúde nos últimos dois anos, o território indígena registrou “piora acelerada dos indicadores de saúde”.

Maioria das crianças ianomâmis está desnutrida

Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), Junior Hekurari Ianomâmi afirma que essa é a pior situação sanitária que ele já vivenciou. De acordo com ele, hoje as tribos vivem um verdadeiro colapso.

— Eu estou muito triste. Tenho derramado lágrimas junto ao meu povo ianomâmi. Não sei o que eu faço mais. O Ministério da Saúde só fica se justificando, mas nós não somos objetos, somos seres humanos. Temos vida, temos futuro. É muito dinheiro que destinaram a nossa saúde, e até hoje nós nunca vimos esses milhões. Dezenove mil cestas básicas? também nunca vimos. É a pior situação que eu já vi na minha vida. Desde os meus 16 anos eu venho acompanhando essa luta de perto, e até agora, esse é o pior momento — desabafou.

Segundo ele, a fome está diretamente ligada à propagação da malária, sobretudo entre as crianças. Com a evolução da doença, os infectados acabam perdendo o apetite, e consequentemente ficam desnutridos. O drama desses povos foi mostrado a fundo no Fantástico, da TV Globo, no último domingo.

—  A malária é uma doença que tem cura, tem remédio, tem prevenção, mas está desnutrindo nossa população. Tudo diante dos olhos do governo — disse Junior ao GLOBO. — A malária está matando. Como não estão dando tratamento ou assistência? Começou a aparecer desnutrição, porque as crianças e as demais pessoas que ficam doentes não conseguem comer por causa da doença. O povo ianomâmi está passando por algo que nunca havíamos passado antes.

De acordo com o MPF, a desnutrição já atinge 52% das crianças de todo o território ianomâmi — ou seja, a maioria delas. Nas comunidades que vivem isoladas, os dados mostram que 80% das crianças estão abaixo do peso, o que, segundo o órgão, faz com que as terras indígenas ianomâmis tenham índices bem superiores ao sul da Ásia e à África subsaariana, por exemplo, onde encontram-se os países com maior incidência de desnutrição infantil.

44 mil casos em população de 28 mil pessoas

De fato, esses dados coincidem com a incidência da malária. E os números, que impressionam, mostram que 133,33 a cada mil crianças nascidas no território morrem por conta da doença. Ainda segundo o Ministério Público Federal, nos últimos 2 anos, foram 44 mil casos diagnosticados na comunidade, o que indica que boa parte dos 28 mil ianomâmis se infectou mais de uma vez. Só em 2020, os inanomâmis foram 47% de todos os casos de malária registrados em terras indígenas no Brasil.

O líder Junior Ianomâmi também criticou o fato de a Funai impedir que médicos da Fiocruz entrassem nas terras indígenas por conta da Covid-19. Segundo ele, a decisão cabe aos povos que vivem naquela área, e não ao governo federal.

“É muito lamentável, muito triste que o governo esteja vendo as lágrimas do povo ianomâmi, o povo da floresta, e mesmo assim não esteja fazendo nada. Precisamos que o governo federal ou a Justiça interfiram imediatamente. Nós precisamos ter paz”, disse. “Quem está sofrendo somos nós. E somos nós quem temos que convidar a entrar em nossas terras ou não. Nós moramos lá. Então quem solicita e decide quem entra ou não somos nós, não a Funai. Não somos tutelados”.

Junior também comentou sobre os relatos de indígenas que tem procurado justamente garimpeiros — inimigos históricos, que invadem e exploram áreas protegidas ilegalmente — por ajuda: é um símbolo do desespero dessas pessoas.

“Os ianomâmis estão indo em ponto de garimpeiros pedir socorro. É uma situação caótica. Estamos em colapso. A Funai não está nem aí, porque é parte do governo. Estão trabalhando conforme pensa o governo. Não está preocupada com a nação indígena. Não se preocupa com a população da floresta. Está querendo proibir a entrada dos médicos que querem ajudar a população”.

O que dizem as autoridades

Procurada, a Fiocruz disse que, por enquanto, não irá se posicionar sobre o assunto. O Ministério da Saúde, por sua vez, enviou uma nota, onde questiona as acusações de negligência feitas pelas lideranças indígenas, e informa que vem elaborando um plano de intensificação no combate à malária no local. Segundo a pasta, já foram 16 missões realizadas em terras ianomâmis este ano. Confira a nota:

“O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami informa que recebeu mais uma equipe técnica da Secretaria Especial de Saúde Indígena nesta semana visando intensificar as atividades de saúde desenvolvidas pelo Distrito. Neste ano, outras 16 missões de apoio já foram realizadas.

A reunião teve como principal objetivo levar mais ações, pessoal,  recursos e apoio, principalmente, à região de Surucucu. O plano de intensificação de enfrentamento da malária e desnutrição foi dividido por etapas de execução que incluem ações imediatas, de médio e longo prazo e contou com a colaboração do conselho distrital e lideranças indígenas. Como parte das ações a serem adotadas imediatamente, o Distrito Sanitário Yanomami já enviou mais profissionais de saúde, medicamentos e insumos para a região de Surucucu.

Em relação ao falecimento da criança relatada pelo presidente do condisi, trata-se de mais um comunicado cujo relato requer apuração, pois tem sido comum esse tipo de informação sem que as acusações de negligência sejam comprovadas. Tão logo o Distrito tomou conhecimento sobre a situação da criança, adotou todas as medidas necessárias para prestar atendimento. As remoções aéreas estão sendo feitas de acordo com as demandas, fazendo com que, mais uma vez, as informações de negligência sejam consideradas infundadas. Por fim, ressalta-se que cabe ao distrito a realização de atenção primária e que, no caso de necessidade de atendimento de média complexidade ou internação hospitalar, cabe ao estado e municípios a regulação dos casos”.

A Funai também foi questionada sobre o impedimento dado à equipe da Fiocruz. A Fundação, sem entrar em muitos detalhes, disse apenas que os ingressos em terras indígenas estão suspensos desde o dia 17 de março de 2020 por conta da Covid-19, tendo sido a portaria prorrogada em 5 de março deste ano.

“A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que as autorizações para ingresso em Terras Indígenas estão suspensas desde o dia 17 de março de 2020 como medida preventiva à pandemia de Covid-19, conforme a Portaria nº 419/PRES 2020, prorrogada pela Portaria n° 183/PRES de 5 de março de 2021. Consequentemente, todas as autorizações para pesquisas que impliquem ingresso em Terra Indígena também estão suspensas.

Ressaltamos que a Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde, mantém o estado de alerta acerca do enfrentamento da pandemia de Covid-19 entre as populações indígenas, conforme o Ofício Circular nº 48/2021/DASI/SESAI/MS de 03/09/2021, bem como a adoção de todas as medidas sanitárias necessárias para evitar a disseminação do vírus”.

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