As bancas de heteroidentificação e o apagamento das identidades indígenas e negras no País
Por: Inory Kanamari
19 de novembro de 2025Ka tücüna naina. Saudações, leitor(a). Hoje, como advogada indígena com experiência no campo jurídico, me sinto compelida a questionar e refletir sobre as políticas de cotas e a maneira como elas têm sido aplicadas nas universidades públicas, particularmente nas bancas de heteroidentificação.
Ao longo de minha trajetória, tenho acompanhado, com tristeza e indignação, como muitas vezes as cotas, que deveriam ser um instrumento de inclusão, acabam sendo um mecanismo de exclusão e discriminação para aqueles que são, de fato, vítimas do racismo, do preconceito e da xenofobia.
Em especial, quero falar sobre os indígenas nikkies do Amazonas, um grupo pouco conhecido, mas que enfrenta desafios imensos ao tentar acessar seus direitos — principalmente no contexto da educação superior. O que está em jogo aqui não é apenas a cor da pele ou a aparência, mas o reconhecimento e a valorização das identidades, das culturas e das histórias de vida que definem quem somos.
Os nikkies do Amazonas são filhos de indígenas que nasceram fora do território tradicional ou filhos de pai indígena e mãe nawa/cariú (não indígena), ou vice-versa. Os nikkies, que significa “indígena misturado”, cresceram em áreas urbanas e tiveram sua educação e vivência cultural mescladas com a cultura nawa (não indígena).
O termo “nikkei”, originário da língua japonesa, é usado para descrever os descendentes de imigrantes japoneses que nasceram fora do Japão. Tal como os nikkeis do Japão, os indígenas conhecidos como nikkies enfrentam muitos desafios: não são plenamente aceitos pela sociedade não indígena. São vistos como “misturados”, “não puros”, e com frequência não se sentem acolhidos nem por um lado nem pelo outro, o que gera uma exclusão brutal e uma luta constante por um espaço de pertencimento. Essa exclusão não é apenas social, mas também institucional — como ocorre quando tentam ingressar nas universidades por meio das cotas raciais ou indígenas.
O que me indigna profundamente — e que é um reflexo da fragilidade da política de cotas — é que os nikkies indígenas, mesmo tendo uma história de vida ligada ao movimento indígena e ao seu povo, enfrentam barreiras insuperáveis. Mesmo se declarando indígenas e possuindo documentos como o RANI (Registro Administrativo de Nascimento Indígena) e cartas de declaração de pertencimento emitidas por suas etnias, muitos são desclassificados por não possuírem o estereótipo físico “tradicional” que se espera de um indígena — ou simplesmente por não falarem sua língua materna, ou não corresponderem ao imaginário de alguns antropólogos brancos.
Isso revela a falta de compreensão sobre as realidades e diversidades das comunidades indígenas, especialmente daqueles que, como os nikkies, nasceram fora do território, mas continuam a carregar suas culturas e identidades.
Um dos casos de ampla repercussão nacional foi o da estudante Clara Costa, autodeclarada negra. Esse é um exemplo alarmante do problema. Ela teve seu sonho interrompido ao passar pela última fase do processo seletivo do mestrado, quando foi surpreendida pelo resultado da banca da Universidade Federal do Pará (UFPA): para a banca, Clara não era preta.
O fato ocorreu em 2023. O que chama atenção nesses casos é a composição dessas bancas, geralmente formadas majoritariamente por profissionais brancos e ricos — entre eles, inclusive, uma pseudoantropóloga que se autoconferiu a autoridade de decidir quem é preto e quem é indígena.
A justificativa absurda de que Clara não se encaixava no perfil de cotista negra, apesar de sua evidente cor de pele preta, mostra o quão falha e racista pode ser essa abordagem. A estudante já havia cursado Serviço Social na própria UFPA como cotista negra e fazia parte do movimento negro da instituição.
Infelizmente, o caso de Clara Costa não é isolado, tampouco se restringe a pessoas negras. Uma representante indígena bastante conhecida também relatou ter vivido o mesmo drama ao tentar ingressar no mestrado pela cota indígena. Apesar de apresentar toda a documentação exigida e de ter uma trajetória de vida no movimento indígena, incluindo atuação em organizações nacionais e internacionais, a candidata foi barrada pela banca de heteroidentificação. A comissão simplesmente rejeitou sua identidade indígena, sugerindo que tanto o RANI quanto a Carta de Pertencimento eram falsos — com base no fato de que a candidata falava bem o português e não apresentava “estereótipos visíveis”.
Esse fenômeno não é apenas uma falha na implementação das políticas de cotas, mas um reflexo profundo da exclusão e marginalização das minorias. Quando as vagas destinadas a negros e indígenas não são preenchidas por aqueles que têm direito, acabam ocupadas por pessoas não indígenas ou não negras, perpetuando um sistema estruturalmente excludente.
A maior injustiça aqui não é apenas a ausência de representação — é a negação de um direito fundamental: o direito de ser reconhecido e tratado com dignidade. Os nikkies, com suas histórias complexas e identidades múltiplas, enfrentam a exclusão social, política e acadêmica.
A verdadeira inclusão vai além de simplesmente preencher uma vaga. Ela exige respeito às múltiplas identidades, culturas e histórias de vida que definem os indivíduos. Para que as cotas cumpram seu papel de reparação histórica e social, é necessário que as bancas de heteroidentificação sejam plurais e multiétnicas, compostas por profissionais capacitados e verdadeiramente comprometidos com a compreensão das realidades indígenas e negras.
Precisamos de um sistema mais justo — um que entenda que a cor da pele ou os estereótipos visuais não são os únicos marcadores da identidade de um indivíduo. Somos muito mais do que aparência: somos nossas histórias, nossas culturas, nossa luta e nosso direito de existir plenamente, com dignidade, respeito e oportunidades.
As políticas de cotas devem refletir essas realidades. Devem ser um instrumento eficaz para garantir que todos, independentemente de sua origem, tenham acesso igualitário às oportunidades que merecem. Somente assim construiremos uma sociedade verdadeiramente inclusiva e justa.
Bapo ikoni. Até a próxima pauta.