Assembleia Legislativa proíbe linguagem neutra nas escolas de Rondônia

O projeto ainda veta a linguagem neutra em materiais didáticos, comunicados institucionais e editais de concursos públicos. (Reprodução/ ALE-RO)
Iury Lima – Da Cenarium

VILHENA (RO) – A Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO) aprovou na última semana um Projeto de Lei (PL) que proíbe a inclusão da linguagem neutra na grade curricular de escolas públicas e privadas no Estado. O projeto passa por cima da União, desrespeitando a hierarquia que determina que é o governo federal é quem deve instituir métodos de ensino por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). 

O deputado estadual Eyder Brasil (PSL), autor do PL, disse por meio de nota enviada à imprensa que a linguagem usada para acolher pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros binários (masculino e feminino) é uma “aberração”, além de uma “deturpação” da língua portuguesa. O projeto ainda veta a linguagem neutra em materiais didáticos, comunicados institucionais e editais de concursos públicos.

O deputado estadual e autor do PL nº 948, Eyder Brasil (PSL) (Reprodução/Assessoria)

Para o deputado, o projeto assegura “medidas protetivas aos direitos dos estudantes”, mesmo que, por outro lado, promova o apagão social desta população em uma unidade federativa notadamente conservadora e apoiadora de posicionamentos ideológicos retrógrados estritamente ligados ao presidente Jair Bolsonaro, famoso por tecer diversos comentários homofóbicos, transfóbicos e desrespeitosos, direcionados à população LGBTQIA+.  

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Além disso, o texto alimenta o desrespeito a pessoas trans não-binárias ao impedir que sejam tratadas de maneira adequada dentro de ambientes em que deveriam se sentir seguras e acolhidas, como a escola. 

Real objetivo

Formade* em Terapias Cognitivo Comportamentais de Terceira Geração, além de professore e monitore na primeira formação brasileira em Terapia Afirmativa para Minorias Sexuais e de Gênero, Vini Pezzin, que se identifica como não-binárie e atua como psicólogue clínique de pessoas LGBTQIA+ em Cacoal (RO), acredita que o projeto tem o objetivo de inviabilizar a popularização da linguagem neutra. 

“Eu avalio como um desserviço esse projeto de lei, que não está voltado para um sentido de aprendizagem. A gente sabe que o ensino das escolas públicas, principalmente, ainda é muito defasado e eu vejo isso como uma forma de restringir que a linguagem neutra se popularize e se torne mais usual, de forma que, a longo prazo, passa fazer parte da língua portuguesa em sua norma culta, com regras gramaticais e tudo mais”, declarou Pezzin, em entrevista à CENARIUM.

Vini Pezzin, piscólogue, professore e monitore, defende o respeito à linguagem neutra para pessoas não-binárias. (Reprodução/Acervo pessoal)

Vini Pezzin explica que a linguagem neutra e inclusiva ainda está em construção e que é muito mais popularizada em contextos de comunidades de pessoas trans não-binárias, não sendo, atualmente, usada de forma tão comum e abrangente, mas a defende como forma de acolhimento e respeito.

“Nem todas as pessoas trans não-binárias utilizam pronomes neutros, mas há uma porcentagem que usa e é importante que a gente respeite essas pessoas, que os educadores, as pessoas ao redor, que elas aprendam como forma de respeito. Eu acho que essas pessoas passam bullying e por dificuldades, apesar de existir esse projeto ou não. Esse projeto viria no sentido de ainda mais dificultar que os educadores, minimamente, respeitem essas pessoas”, avaliou.

Elu afirma que pessoas trans, de forma geral, são mais suscetíveis ao sofrimento mental e que existem estudos no exterior que comprovam que o uso de pronomes neutros, além do tratamento adequado às preferências de cada pessoa amenizam a dor. “Isso dimunui até as taxas de suicídio. Então, parte de se utilizar a linguagem neutra em ambientes educativos vem disso, de acolher essas pessoas e promover um ambiente seguro para elas”, concluiu Vini Pezzin. 

Inconstitucionalidade

O Projeto de Lei, segundo o presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero LGBTQI+ da subseção de Rondônia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cleverton Reikdal, pode ser considerado inconstitucional, por desconsiderar a competência privativa da União de legislar sobre alterações da grade curricular educacional por meio da LDB. 

“Quando nós estamos a tratar do currículo educacional, esse currículo é produzido em âmbito nacional. Existem alguns temas que são regionalizados e locais, esses temas locais acabam sendo regulamentados nesses espaços. E, aqui, a gente vê que a linguagem neutra não é apenas um assunto nacional, mas também já mencionou tópicos de gramática internacional, então isso seria uma alteração curricular que deveria abranger todos os Estados, todos os municípios, ou seja, toda a educação nacional”, afirmou Cleverton.

“O texto proposto no projeto é muito genérico. Ele não especifica exatamente o que é a linguagem neutra, muito menos o que é incluir ou ensinar a linguagem neutra”, avaliou o presidente da comissão.

Para Reikdal, não falar sobre a linguagem neutra é perder a chance de explorar ainda mais o conhecimento e promover o debate sobre contextos históricos entre os alunos, em sala de aula, uma vez que o assunto poderia ser utilizado até mesmo como tema de análise, mesmo que não incluído em forma de uma disciplina.

“Por que surge-se uma linguagem nova? Seria um tema que falaria como os movimentos culturais acabam interferindo nos processos de construção linguísticos de uma nação. Isso tudo pode ser discutido? Ou esse debate também está proibido? Isso que a lei deixa com dificuldades para analisar”, disse.

Falhas

O Projeto de Lei ainda diz que as instituições educacionais que se oporem ao regramento serão punidas com sanções, utilizando o apelo de “prejuízo” ao ensino da norma culta da língua portuguesa como justificativa. Outro ponto que, para Cleverton Reikdal, deixa dúvidas e gera alerta: “Será uma suspensão? Será uma advertência? Uma perda do cargo? E quando adentra para a área da iniciativa privada, fica ainda mais difícil”, adverte o advogado.

“Então, esse termo genérico, “sanção”, acaba refletindo uma verdadeira autorização para que o nosso Estado possa punir pessoas que tratem sobre linguagem neutra, de qualquer forma e de qualquer jeito”. lamentou.

Além disso, para o presidente da Comissão de Diversidade Sexual, o texto da lei também conflita com a Constituição do Estado de Rondônia, que define, por meio do artigo 196, a competência do Conselho Estadual de Educação para sugerir e deliberar sobre os temas abordados na grade curricular de ensino. “Então, não me parece, neste primeiro momento, que essa proposta legislativa seja constitucional, em razão justamente desses diversos problemas”, declarou Reikdal.

“Me parece que quem vem criando essa ideologia de gênero são eles, esses municípios, esses Estados, esses governantes que acabam afirmando que a única sexualidade ou que a única condição de gênero que vale é essa heteronormativa, no sentido de que são corretos apenas os relacionamentos heterossexuais e de pessoas cis gênero”, repudiou.

Posicionamentos

Procurado pela reportagem da REVISTA CENARIUM, que questionou sobre a motivação para a criação do PL, bem como sobre o teor de repressão e censura do texto, além da falta de competência da esfera legislativa estadual para debater sobre assuntos relativos à estrutura nacional, Eyder Brasil “não pôde atender por cumprir agenda em Brasília”, sendo que horas antes de tomar conhecimento das perguntas, havia confirmado, por meio de assessoria, que daria entrevista.

Já o governo de Rondônia informou, por meio de nota, que analisará a legalidade e a repercussão social do projeto dentro do prazo de 15 dias a contar de 21 de setembro. 

O projeto de lei n° 948, de autoria do deputado Eyder, foi aprovado pela Assembleia Legislativa de Rondônia durante a sessão realizada no dia 21/9/2021 e segue para elaboração de autógrafo de lei.

Até a presente data, o projeto de lei nº 948 não encontra-se para análise, mas tão logo seja encaminhado o mesmo será analisado tanto legalmente quanto a repercussão do mesmo para a sociedade.

Ressaltando que após o recebimento, o Poder Executivo tem um prazo de 15 dias para pronunciamento sobre sanção ou veto, conforme determina a Constituição Estadual
“, assinou a Superintendência de Comunicação (Secom). 

* A pedido de Vinni Pezzin, a CENARIUM optou por adotar o pronome neutro nesta matéria.

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