‘Ato de campanha’, diz indigenista sobre Funai negar proteção a TIs não homologadas

O mais novo golpe às populações tradicionais ocorreu no apagar das luzes de 2021, no dia 29 de dezembro, com uma canetada do coordenador-geral de Monitoramento Territorial da Funai, Alcir Teixeira, em um ofício que autoriza o desmonte. (AFP/Reprodução)

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – A Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu que não vai mais proteger Terras Indígenas (TIs) ainda não homologadas pela União. A decisão ocorreu no apagar das luzes de 2021, no dia 29 de dezembro, com uma canetada do coordenador-geral de Monitoramento Territorial da Funai, Alcir Teixeira, em um ofício que autoriza o desmonte. Para a indigenista e presidente da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Ivaneide Cardozo, o ‘ato político’ é fruto de promessas de campanha do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), além de uma ‘declaração de genocídio’ a povos isolados. 

“Ele [Jair Bolsonaro] está cumprindo o que disse na campanha, que não derramaria nenhum centímetro de Terra Indígena e que iria diminuir a terra. E essa portaria diminui a terra. Se o Supremo Tribunal Federal não reverter essa situação, nós vamos ver aumentar o conflito no campo e vamos ver a tragédia da morte dos indígenas isolados. Genocídio, essa, sim, é uma declaração clara de genocídio. Quem deveria proteger os indígenas, agora está desprotegendo”, afirmou, com indignação, Ivaneide Cardozo.

A indigenista e ativista, Ivaneide Cardozo, acredita que a decisão da Funai atende a retrocessos defendidos por Bolsonaro. (Gabriel Uchida/ Reprodução)

Na avaliação da especialista, o movimento é extremamente estratégico e conveniente para os ideais de Bolsonaro e seus apoiadores. “Isso é para atender ao agronegócio, aos madeireiros, aos fazendeiros, aos empresários e todos aqueles que estão contra os indígenas e que querem se apossar dos territórios indígenas. É um ato de campanha muito claro. E é lamentável que isso esteja acontecendo neste momento”, repudiou.

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Alvos Brasil afora

O Brasil tem hoje, ao todo, 724 Terras Indígenas conhecidas. No entanto, apenas 487 delas são homologadas nos sistemas da Funai, ou seja, de fato reconhecidas pela União. É justamente dessas unidades que o órgão retirou a proteção que promovia. Agora, mais fácil ainda ficou para grileiros, garimpeiros e desmatadores ilegais.

“Se você pegar Rondônia, por exemplo, você vai ter a terra dos índios isolados Tanaru, dos Omerê (…) pega ali, Mato Grosso, tem os Piripkura e vários outros povos indígenas em perigo eminente de genocídio. Se a terra não tem reconhecimento, ou seja, não foi homologada pelo presidente, não foi registrada nos cartórios e nem no Serviço de Patrimônio da União, ‘ela não é Terra Indígena’ e, aí, ela não pode ser atendida”, explica Cardozo sobre o ofício da Funai. “Ou seja, qualquer fazendeiro, qualquer madeireiro, qualquer garimpeiro pode entrar, usar e fazer o que quiser se aquela terra não foi demarcada e homologada”, complementou.

Homologação

Juridicamente lento, o processo de homologação de TIs demanda cinco etapas: começa com a identificação e delimitação dos territórios; em seguida, as etapas de declaração, demarcação física, homologação (inclusão nos sistemas da Funai) e, por fim, o registro em cartório.

De 724 Terras Indígenas espalhadas pelo Brasil, menos de 500 são reconhecidas. (Reprodução Sedam/RO)

Empurrando a responsabilidade

Agora, sem atuação da Funai, as Terras Indígenas ainda não reconhecidas ficam na dependência de outros órgãos federais e estaduais, como a Polícia Federal e as secretarias de Estado de desenvolvimento ambiental. Um ato inconstitucional, segundo Ivaneide Cardozo. 

“O governo estadual não tem essa responsabilidade. Isso é muito trágico, porque os órgãos já estão fragilizados. Eles não estão dando conta do que é da esfera deles, e jogar a responsabilidade para um órgão que não tem nenhuma experiência com os povos indígenas para atuar, em áreas, por exemplo, de indígenas isolados, é um absurdo sem tamanho. É muito trágico, em pleno período eleitoral, colocar essa tarefa na mão de quem não tem a responsabilidade constitucional”, pontuou a indigenista e presidente da Associação Kanindé.

Falta diálogo

A falta de comunicação entre as esferas federal, estadual e municipal também coloca em risco a proteção dos povos tradicionais, principalmente com o início deste ‘jogo de empurra-empurra’. Foi o que apontou a líder indígena, ativista e coordenadora de Povos Indígenas da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam-RO), Valdenilda Karitiana. 

“No Estado de Rondônia, nós temos 22 Terras Indígenas homologadas e temos 6 TIs em fase de estudo antropológico, mas esses estudos não estão sendo repassados para o Estado. O que a gente pede, como indígena, é que o governo federal, por meio da Funai, junto ao Estado, tenha esse diálogo para que esses indígenas tenham proteção. Apesar de eles não terem sua terra demarcada e homologada ainda, eles precisam ser protegidos”, defendeu a ativista do povo Karitiana.

Ativista e coordenadora de Povos Indígenas da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam-RO), Valdenilda Karitiana. (Arquivo pessoal)

A coordenadora de Povos Indígenas da Sedam cita como exemplo uma comunidade de seu próprio povo, que, sem unidade protegida, encontra abrigo em uma propriedade rural. “Nós temos Karitiana que estão no processo de estudo antropológico, mas a metade da Terra Indígena ficou de fora e eles estão dentro de uma fazenda. Eles só não saem de lá, porque eles sabem que aquele lugar é a uma terra tradicional”, revelou. “Aquela discussão sobre a demarcação das TIs, que só podem ser demarcadas se os indígenas estiverem naquele local antes de 1988 (…) isso não justifica”, acrescentou. 

“Eu vejo que a Funai não pode proibir essa proteção territorial desses indígenas. Eu, como indígena, defendo a questão dos territórios que estão em estudo antropológico, porque eu conheço a história desses indígenas que estão lutando para que o seu território seja demarcado”, concluiu a coordenadora e ativista.

Entenda mais sobre o caso, na reportagem da Cenarium, em parceria com a TV Cultura

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