Atribuir crise do oxigênio à falta de pavimentação da BR-319 é tecnicamente infundado e eticamente perverso
Por: Lucas Ferrante
18 de novembro de 2025Recentemente, os senadores Omar Aziz (PSD-AM) e Plínio Valério (PSDB-AM) proferiram ataques infundados à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (REDE-SP), tentando responsabilizá-la pela ausência de uma ligação terrestre permanente entre Manaus e o restante do país — uma condição imposta justamente pela geografia única e extremamente complexa da região. A pavimentação da rodovia BR-319 atravessa áreas de alta pluviosidade, solos instáveis e trechos alagadiços de floresta densa, o que representa não apenas um enorme desafio logístico e de engenharia, mas também um risco ambiental de proporções críticas. Essa região abriga uma das maiores biodiversidades do planeta, e a construção da estrada pavimentada aceleraria o desmatamento, a grilagem de terras e a perda irreversível de serviços ecossistêmicos. Além disso, os senadores tentam relacionar a ausência da pavimentação à trágica crise de oxigênio vivida em Manaus durante a segunda onda da COVID-19 — uma associação incorreta e já desmentida por estudos técnicos. Como pesquisador que emitiu alertas públicos sobre a iminência dessa segunda onda, e que há mais de uma década estuda os impactos socioambientais da BR-319, sinto-me no dever de corrigir essas distorções e repor a verdade dos fatos.
Uma cronologia dos avisos desprezados
O colapso da saúde em Manaus durante a pandemia de COVID-19 e a escassez de oxigênio em janeiro de 2021 não foram surpresas imprevisíveis. Em julho de 2020, publiquei um artigo na revista Nature Medicine, junto a outros cientistas, alertando que as políticas adotadas pelo Brasil condenariam a Amazônia a uma segunda onda da COVID-19. O texto chamava atenção para a vulnerabilidade dos povos indígenas e a decisão precipitada de reabrir escolas e atividades não essenciais, sem vacinação nem estrutura adequada. Nenhuma providência foi tomada. Mais de seis meses antes da crise do oxigênio, emitimos uma nota técnica solicitada pelo Ministério Público do Amazonas, prevendo o colapso e recomendando medidas emergenciais. Em setembro, durante audiência pública na Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM), reiteramos o alerta. O governo federal, estadual e municipal recusou-se a agir com base na ciência.

Em janeiro de 2021, o Brasil assistiu estarrecido à morte de centenas de pessoas em Manaus por falta de oxigênio, enquanto caminhões ficavam atolados na BR-319, usados de forma irresponsável como símbolo político. O estudo publicado posteriormente no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, também editado pelo grupo Springer Nature, comprova que havia alternativas logísticas mais rápidas e baratas para levar oxigênio à cidade — como o uso de balsas pelo rio Madeira ou transporte aéreo — mas estas foram ignoradas por uma escolha deliberada de promover a rodovia BR-319. Ou seja, houve uma escolha consciente por parte dos tomadores de decisão de permitir que a crise de saúde pública no Estado do Amazonas se agravasse para fazer lobby em favor da rodovia BR-319.
A BR-319 como farsa logística e armadilha ambiental
A tentativa de atribuir a culpa pela falta de oxigênio à ausência de reconstrução da BR-319 é tecnicamente infundada e eticamente perversa. A estrada, abandonada desde os anos 1980, foi usada como peça de propaganda para justificar projetos de destruição ambiental. O próprio governo sabia, desde novembro de 2020, que o oxigênio acabaria em Manaus, mas não tomou medidas eficazes como demonstram os estudos publicados nos periódicos científicos Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, no periódico Preventive Medicine Reports e Journal of Public Health Policy. Sendo este ultimo estudo laureado como o melhor estudo do ano publicado no periódico.
Como demonstramos em estudos científicos, o transporte por via fluvial era plenamente viável e mais rápido naquele período, já que o rio Madeira apresentava condições ideais de navegabilidade. Ainda assim, caminhões foram enviados por uma rodovia intransitável em plena estação chuvosa, levando quatro dias para chegar, enquanto balsas poderiam ter feito o trajeto em 30 a 52 horas — com uma economia de até R$ 1,5 milhão aos cofres públicos, tornando o transporte rodoviário até 8,5 vezes mais caro.
Os interesses que se escondem por trás do ataque à ministra
Os ataques dos senadores a Marina Silva ignoram o contexto real dos retrocessos ambientais dos últimos anos. Durante o governo Bolsonaro, o desmatamento atingiu níveis históricos e o avanço do crime ambiental — com grilagem, garimpo e expansão agropecuária — ameaçou povos indígenas e empurrou a Amazônia para o ponto de não retorno climático, conforme descrito no Atlas da Amazônia Brasileira.
O que está em jogo hoje é justamente o esforço de reversão desses danos. A ministra Marina Silva tem atuado com base em ciência, direitos humanos e compromissos internacionais. Atacá-la por resistir a pressões políticas que favorecem devastação e violência é não só injusto, mas revela o desconforto de certos setores com a retomada de uma política ambiental séria e baseada em evidências.
A quem interessa a mentira?
O uso político da tragédia do oxigênio e das crises da pandemia é um insulto à memória das vítimas. Os que hoje atacam Marina Silva são, em muitos casos, os mesmos que apoiaram — ou silenciaram — diante das decisões criminosas do governo anterior, que desmantelou políticas ambientais e de saúde pública, cortou verbas de pesquisa e marginalizou a ciência.
No caso da BR-319, como já mostramos em diversos estudos, sua reconstrução sem rigor técnico e ambiental ampliaria o desmatamento em mais de 1200% na região, colocando em risco blocos contínuos de floresta que regulam o regime de chuvas de todo o Brasil, inclusive nas regiões Sul e Sudeste, com consequências econômicas e sanitárias irreversíveis.
Conclusão
Os senadores Omar Aziz e Plínio Valério deveriam usar sua energia política para enfrentar os verdadeiros culpados pela crise na Amazônia: o desmonte de políticas públicas, o avanço da grilagem e do garimpo, e a criminalização dos defensores da floresta. Em vez de atacar quem está tentando reconstruir as pontes com a ciência e os povos da floresta, deveriam se perguntar: por que ignoraram todos os avisos?
Eu, como cientista, fiz minha parte. A história, infelizmente, comprovou que os alertas estavam certos. Agora, não vamos permitir que usem tragédias anunciadas para justificar projetos de morte.
Referências:
- Ferrante et al. (2020). Brazil’s policies condemn Amazonia to a second wave of COVID-19. Nature Medicine. https://doi.org/10.1038/s41591-020-1026-x
- Ferrante & Fearnside (2023). Brazil’s Amazon Oxygen Crisis. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities. https://doi.org/10.1007/s40615-023-01626-1
- Ferrante, L. et al. Dynamics of COVID-19 in Amazonia: A history of government denialism and the risk of a third wave. Prev. Med. Rep. 26, 101752 (2022). https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2211335522000596?via%3Dihub
- Ferrante, L. et al. How Brazil’s President turned the country into a global epicenter of COVID-19. J. Public Health Policy 42, 1–13 (2021). https://link.springer.com/article/10.1057/s41271-021-00302-0
- Fundação Heinrich Böll (2025). Atlas da Amazônia Brasileira. https://br.boell.org/pt-br/atlas-da-amazonia