Ayahuasca/Ramih: Linha tênue entre cura e dependência – O perigo do uso indiscriminado fora dos territórios sagrados


Por: Inory Kanamari

18 de novembro de 2025

Ka tücüna naina. Esta frase, que em nossa língua Kanamari significa “Olá, leitor(a)”, é a saudação com a qual início este texto, que visa esclarecer um ponto fundamental para nós, povos indígenas da floresta: o uso do Ramih, também conhecido como Ayahuasca ou Cipó, que é uma bebida sagrada em nossa cultura. A importância dessa bebida e o profundo respeito que ela exige são frequentemente desconsiderados por aqueles que não pertencem aos povos originários.

O Ramih não é uma simples bebida, muito menos algo que deve ser consumido de maneira leviana. Ao contrário, ela carrega consigo um poder ancestral, um mistério profundo, e tem uma finalidade essencialmente espiritual e medicinal. Para o povo Kanamari e outros povos da floresta, o Ramih é um elo sagrado com o espírito da terra. Ele é utilizado apenas nos momentos de grande necessidade espiritual e com a verdadeira intenção de buscar sabedoria, cura ou orientação. Não se deve consumir o Ramih sem consciência e respeito, como fazem muitas vezes aqueles que não compreendem sua profundidade e sua importância.

O uso do Ramih é restrito a rituais conduzidos pelos Marinawas, nossos pajés e líderes espirituais, que são os verdadeiros detentores desse saber. Somente eles têm o conhecimento ancestral necessário para preparar e conduzir o ritual de forma sagrada, com o devido respeito e a pureza de intenção. Em nossa cultura, a presença feminina na elaboração do Ramih é muitas vezes evitada, pois acreditamos que a energia masculina é fundamental para lidar com a poderosa força invisível que a bebida contém. Esse conhecimento é passado de geração em geração, e o respeito à sua sabedoria é imensurável.

Quando o Ramih é consumido de maneira consciente e reverente, ele se torna um portal para o mundo espiritual, um elo que conecta os seres humanos ao espírito da floresta e à nossa ancestralidade. Durante o ritual, o pajé pode até se transformar em uma onça, atravessando dimensões espirituais para buscar sabedoria e guiar os participantes. Ele é o mediador entre o mundo visível e o invisível, conduzindo o ritual com a sabedoria que só os Marinawas possuem.

Porém, o que devemos enfatizar é que o Ramih não deve ser tratado de forma desrespeitosa ou leviana, como infelizmente tem ocorrido com crescente frequência. Muitos não indígenas têm se apropriado do uso do Ramih de maneira indiscriminada, sem compreender os fundamentos e o profundo respeito exigido por essa prática. Usá-lo fora de contexto, sem a devida orientação e em situações de pura diversão, é um desrespeito direto à nossa cultura e às forças espirituais que o Ramih carrega.

O Ramih é para aqueles que estão espiritualmente preparados e que buscam, de fato, uma conexão genuína com o sagrado. Somente quem é digno, e quem busca o caminho da verdade e da sabedoria, pode acessar o poder desta bebida. A experiência proporcionada pelo Ramih não é uma simples “viagem”, mas uma revelação profunda, que exige um coração puro e uma mente disposta a compreender o que o espírito da floresta tem a ensinar.

É fundamental que aqueles que não pertencem aos povos indígenas compreendam que o Ramih não é um objeto de consumo, mas um elemento sagrado. Ele deve ser tratado com o devido respeito, reconhecendo que não somos “doados” a esta bebida, mas sim escolhidos por ela, segundo a sabedoria do espírito da floresta. A sua revelação não é para todos, e só aqueles que realmente buscam a verdade e estão preparados para o que ela revela é que podem ser tocados por sua essência.

Em nossa cultura, a preservação do sagrado é um princípio fundamental. O uso indevido do Ramih, por aqueles que não pertencem aos nossos povos, desrespeita não apenas a nós, mas a todo um universo espiritual que, até hoje, ainda busca ser reconhecido e respeitado. Por isso, faço um chamado para que as pessoas que se apropriam dessa prática fora do contexto adequado reflitam sobre a verdadeira origem do Ramih, e sobre o quanto o respeito e a reverência são essenciais para a preservação de nossos saberes e rituais.

Em conclusão, é fundamental que o Ramih, essa bebida sagrada e poderosa, seja tratado com o respeito e a reverência que lhe são devidos. Não é uma substância para ser consumida sem consciência, fora de nossos territórios ou em busca de entretenimento. O Ramih deve ser utilizado unicamente em nossos rituais, dentro das aldeias e sob a orientação dos Marinawas, nossos pajés, que são os verdadeiros detentores do conhecimento necessário para conduzir os rituais com sabedoria e proteção. Eles, com suas longas jornadas espirituais e de aprendizado, são os responsáveis por garantir que essa bebida seja utilizada de maneira curativa e espiritual, e não como uma droga.

O Ramih é uma medicina poderosa, capaz de curar e iluminar aqueles que estão preparados para recebê-lo. No entanto, deve ser lembrado que a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem e na intenção. Quando desobedecemos aos ensinamentos dos Marinawas e utilizamos o Ramih de forma errada, sem respeito ou preparação espiritual, corremos o risco de criar dependência química, e não cura. A verdadeira intenção do Ramih nunca foi gerar vícios ou ilusões; ele foi dado ao nosso povo como um instrumento de cura e conexão com o sagrado. Ao usá-lo de maneira inadequada, distorcendo seu propósito, criamos uma dependência que jamais foi ensinada pelos Kanamaris e, com isso, negamos a verdadeira função dessa bebida ancestral.

Portanto, é essencial que aqueles que não pertencem aos nossos povos compreendam que o uso do Ramih fora de seus territórios e rituais, sem o acompanhamento dos Marinawas, é uma violação do sagrado. O respeito aos nossos saberes, à nossa cultura e ao nosso povo não deve ser negociado. O Ramih é um elo com a espiritualidade e a natureza, e só deve ser acessado por aqueles que, de fato, possuem o merecimento e a preparação necessária para receber as revelações que ele oferece. Nosso chamado é para a preservação desse saber, para que possamos continuar a honrar e proteger nosso legado, e que as futuras gerações possam desfrutar da cura e da sabedoria que o Ramih oferece.

Bapo ikoni. Até a próxima pauta.

(*)Inory Kanamari é a primeira advogada indígena do povo Kanamari e uma das vozes mais relevantes na defesa dos direitos dos povos originários. Palestrante com mais de 50 apresentações no Brasil e no exterior, já integrou comissões da OAB-AM e do Conselho Federal da OAB, e atualmente é membra consultora da OAB-RJ (2025-2027). Atuou como consultora no projeto do CNJ que traduziu a Constituição Federal para a língua Nheengatu e foi professora convidada da Escola de Verão da Universidade Metropolitana de Toronto, no Canadá, em parceria com a Participedia.

O que você achou deste conteúdo?

VOLTAR PARA O TOPO
Visão Geral de Privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.