Bancada Cristã: uma ameaça à ciência, aos direitos humanos, à saúde pública e à Amazônia


Por: Lucas Ferrante

18 de novembro de 2025

A recente decisão da Câmara dos Deputados de acelerar a criação da chamada “Bancada Cristã” reacendeu o debate sobre os limites entre religião e política no Brasil. O projeto, que dá status formal a um grupo de parlamentares cristãos e o direito de participar das reuniões de líderes, foi aprovado em regime de urgência por 398 votos a 30. Para muitos especialistas, isso representa uma ameaça à laicidade do Estado, um princípio essencial para garantir que políticas públicas sejam guiadas por evidências, e não por dogmas religiosos.

Ciência em risco

O avanço de bancadas religiosas dentro do poder público tem preocupado cientistas. A razão é simples: quando decisões políticas passam a se basear em fé e não em dados, o conhecimento científico perde espaço. Um estudo publicado no periódico científico Political Science Research and Methods, editado pela renomada Universidade de Cambridge, demonstrou que o crescimento do movimento evangélico no Brasil vem acompanhado de um maior conservadorismo político e de uma menor aceitação de evidências científicas que contradizem crenças religiosas — como as que tratam de evolução, mudanças climáticas e direitos sexuais.

Essa tendência já se manifestou durante a pandemia, quando setores religiosos minimizaram o valor das vacinas e da ciência, favorecendo discursos de “cura pela fé”. Dois estudos científicos conduzidos por nosso grupo de pesquisa — um publicado na Nature Medicine e outro no Journal of Public Health Policy — demonstraram que o negacionismo científico e a atuação de grupos políticos vinculados a igrejas evangélicas, somados ao lobby de pastores pela reabertura de templos durante a pandemia, contribuíram diretamente para a eclosão da catastrófica segunda onda de COVID-19 em Manaus.

O plenário da Câmara dos Deputados (Beto Barata/Agência Senado)

O mesmo tipo de negação se estende agora ao debate ambiental. Um estudo recente, publicado no periódico científico Frontiers in Psychology, apontou que a ideologia política e a religião, juntamente com o sexo e a idade dos indivíduos, foram os preditores mais consistentes e significativos do ceticismo em relação às mudanças climáticas. Especialistas de diversas áreas tem alertado que institucionalizar uma bancada cristã pode dar força a pautas que colocam em dúvida pesquisas científicas e políticas públicas baseadas em evidências, afetando áreas como educação, saúde pública e meio ambiente.

Direitos humanos em retrocesso

Outro ponto sensível é o impacto sobre os direitos humanos. A Constituição Federal proíbe o Estado de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles relações de dependência ou aliança”. Ao criar uma bancada oficialmente religiosa, o Congresso corre o risco de violar esse princípio.

Na prática, isso pode influenciar diretamente políticas públicas de gênero, diversidade e direitos reprodutivos, fatores reconhecidos pela ciência como já apontado aqui na Cenarium. Pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV) analisam que o avanço do chamado “nacionalismo religioso” tem levado à tentativa de impor uma “moral cristã” nas decisões de Estado, afetando a formulação de leis e programas sociais. Essa pressão não é abstrata: grupos religiosos organizados já atuaram para barrar discussões sobre identidade de gênero nas escolas, restringir o aborto legal e interferir em políticas de saúde sexual. A oficialização de uma bancada confessional dá mais poder político a essas agendas, o que ameaça diretamente a pluralidade de crenças e a liberdade individual.

Ameaça à Amazônia

Na Amazônia, os riscos se tornam ainda mais concretos. Muitos parlamentares ligados a pautas religiosas também mantêm alianças com o agronegócio e com setores que defendem a flexibilização das leis ambientais, como apontamos em estudo publicado no periódico científico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge. A fusão entre discurso religioso e interesses econômicos pode abrir caminho para ainda mais desmatamento e enfraquecimento de direitos indígenas.

De acordo com o estudo Religião e Organizações Baseadas na Fé nas Políticas Sociais do Brasil, publicado pela Springer Nature em dezembro de 2024, organizações religiosas têm sido usadas para legitimar discursos de “missão civilizatória” na floresta, o que enfraquece a autonomia de povos tradicionais e favorece projetos que exploram seus territórios. O resultado é perigoso: ao misturar fé e política ambiental, cria-se uma narrativa de que “Deus deu a floresta para ser usada”, desconsiderando séculos de saberes indígenas e pesquisas científicas que mostram o papel vital da Amazônia para o clima global. Como aponta o escritor e analista político Alex Hochuliis, a ascensão do “evangelicalismo da prosperidade” reforça visões de mundo onde o sucesso material é sinal de bênção divina — uma ideia que incentiva a exploração predatória dos recursos naturais. Em tempos de avanço sobre áreas da Amazônia que são grandes reservatórios zoonóticos — cuja exploração pode desencadear novas pandemias, como já apontaram pareceres publicados em periódicos como Nature e The Lancet — a visão predatória da região por estes grupos, somada ao negacionismo científico observado durante a pandemia e à influência de tomadores de decisão com viés religioso e anticientífico, constitui um potente catalisador para novas catástrofes.

Durante a crise da COVID-19, quando alertei sobre a chegada de uma segunda onda, muitas pessoas reagiram dizendo: “está repreendido em nome de Jesus” ou “isso não vai acontecer, Deus vai nos proteger”. O resultado foi trágico. A fé cega e o uso da religião como refúgio para fugir da responsabilidade pelos próprios atos tornaram-se fatores que agravaram a crise sanitária e contribuíram para o colapso em Manaus.

Um alerta à sociedade

A criação de uma bancada religiosa pode parecer inofensiva à primeira vista, mas é um passo perigoso em direção à erosão da neutralidade do Estado. Em um país diverso como o Brasil, onde convivem centenas de tradições culturais e espirituais, a política deve ser um espaço de encontro, não de imposição de fé. A ciência, os direitos humanos e a Amazônia dependem de decisões baseadas em razão, evidência e pluralidade. Quando a fé se transforma em instrumento de poder, perde-se o equilíbrio entre crença pessoal e interesse público. O que está em jogo não é apenas a laicidade do Estado, mas o próprio futuro de um país que precisa de ciência forte, democracia viva e uma floresta de pé.

(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador vinculado à Universidade de São Paulo (USP) e à Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

(*)Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Foi o primeiro autor e líder do grupo de pesquisa que previu a segunda onda de Covid-19 em Manaus, com estudos amplamente citados e publicados em periódicos internacionais. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

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