Basta de retrocessos e impunidades

Quem foi o mandante que determinou a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips? É a indagação do momento, que se soma à pergunta sem resposta sobre quem mandou matar a vereadora Marielle Franco (Psol-RJ) em 2018. Os dois episódios têm muito comum, diferenciam-se apenas pelos cenários: um ocorreu na Floresta Amazônica, e o outro, no centro do Rio de Janeiro, uma cidade que, um dia, foi maravilhosa. Todos eles lutavam em defesa da vida. Por isso, foram condenados à morte, por um sistema perverso que domina o país.

Entre as mais diversas causas de óbito de pessoas do bem, além da indiferença aos ignorados pelo Estado, acrescente-se: a defesa do patrimônio natural, denunciar as injustiça e as iniquidades sociais e econômicas, ser negro, pobre, condenar a fome de mais de 33 milhões de brasileiros, lutar pelos direitos constitucionais dos povos originários e tradicionais, opor-se ao armamento indiscriminado da sociedade, à tortura, à ditadura do Estado militarizado, o negacionismo da ciência e muitas outras políticas que subtraem o direito ao bem-estar coletivo.

Ficar indignado ante os desmandos e mazelas que contribuem para a expansão da miséria significa assinar a própria sentença de morte. As sociedades brasileira e internacional exigem do Brasil uma resposta sobre quem foi o mandante da execução de Bruno e Phillips e aguardam o desfecho do caso Marielle. Os mandantes, provavelmente, não têm CPFs e se os têm, estão blindados por um sistema perverso, que se regozija com os corpos estendidos e mutilados no chão, personificando a vilania do poder público. Aos assassinos, impunidade garantida.

PUBLICIDADE

Nesta sexta-feira, 17, a Polícia Federal informa que a execução covarde do indigenista e do jornalista não foi encomendada por ninguém, ainda que as investigações não tenham sido concluídas. Os únicos responsáveis teriam sido Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como Pelado, e o irmão, Oseney da Costa Oliveira, o Do Santos, que confessaram a atrocidade.

Difícil acreditar nesta versão, quando se sabe que a PF perdeu a imparcialidade e vem sendo manipulada pelo governo cada vez que encontra provas das ilicitudes de aliados ou cúmplices dos desmandos do Executivo, comandado por uma tropa de pessoas insensíveis aos mais elementares direitos humanos.

As duas notórias tragédias, entre outras empurradas para o limbo, se repetem todos os dias, vitimando pessoas que se opõem às políticas públicas de desconstrução de valores civilizatórios, desde 1º de janeiro de 2019. Na floresta, reproduz-se o roteiro do extermínio dos povos originários e tradicionais, um plágio tupiniquim das ações do norte-americano general George Custer que, no início do século 19, comandou a barbárie para extinguir os povos indígenas, igualmente originários como os do Brasil, do mapa dos Estados Unidos.

Nos centros urbanos, ao que se assiste é a matança indiscriminada pelas forças de segurança pública de homens, mulheres, crianças, jovens ou idosos negros das comunidades de periferia (favelas). As balas perdidas são sempre achadas em corpos negros. Bruno Pereira e Dom Phillips trabalhavam em defesa da Terra Indígena Vale do Javari, no oeste da Amazônia, onde há o maior número de povos isolados do planeta.

A execução macabra de ambos não derivou de uma “aventura”, como o inquilino do Planalto qualificou, exibindo, como sempre, a sua falta de empatia e de respeito aos que trabalham pelo bem do próximo. O covarde assassinato é resultado de uma política anti-indigenista premeditada, equivalente à do general Custer. Decorre de um incentivo à eliminação dos povos originários e tradicionais, por meio de projetos de lei que escancaram a porteira para atividade predatórias, como o garimpo, a caça e a pesca ilegais, o desmatamento e outras ações que abrem picadas e caminhos para o narcotráfico.

Não à toa, as organizações criminosas se deslocaram do Sudeste para se infiltrar na Amazônia, a fim lavar o lucro obtido com o comércio de entorpecentes e contrabando de armas, financiando as atividades ilícitas, como a extração de ouro e outros minerais, com graves danos e prejuízos à vida dos povos originários. Os caudalosos rios da região estão sendo contaminados pelo mercúrio da atividade garimpeira, pondo em risco a saúde de indígenas e não indígenas. É a supressão da qualidade de vida de toda a população.

As catástrofes são consequência do desmonte dos órgãos ambientais, que perderam o poder de fiscalizar e punir os infratores; da entrega da Fundação Nacional do Índio (Funai) a alguém que subverteu a missão do órgão, criado para proteger os povos indígenas, e o tornou parceiro dos inimigos tradicionais desse segmento da sociedade brasileira. Esta política do extermínio precisa ser estancada neste país, uma vez que se espraia ante a inércia de uma sociedade que não reage às perdas de seus direitos.

Os desmandos não se aplicam só aos povos indígenas, aos quilombolas e aos outros grupos populacionais, considerados “diferentes”, mas também a todos que não compactuam com o desmonte das antigas conquistas sociais e econômicas, duramente alcançadas pelos brasileiros. Outubro está chegando.

Será o momento de, pacificamente, dar um basta àqueles que se comportam e agem contra a vida, que lucram com a miséria, que enriquecem com o sofrimento das coletividades. Será o momento de reencontros com os valores civilizatórios compatíveis com o século XXI. Basta de retrocessos e impunidade aos assassinos.

PUBLICIDADE
(*)Rosane Garcia, nascida no Rio de Janeiro, mas há 62 anos em Brasília, jornalista, há 41 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e, hoje, é subeditora de Opinião do Correio Braziliense.

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.