Boate Kiss: júri popular inicia nove anos após a morte de 242 jovens em Santa Maria

Fachada da boate Kiss em Santa Maria, em 2018 (Edilson Dantas / Agência O Globo)
Com informações do Infoglobo

RIO – Quase nove anos depois da morte de 242 jovens no incêndio da Boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS), o julgamento dos quatro envolvidos no crime – os empresários e sócios donos da casa de shows, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor musical Luciano Bonilha Leão – terá início nesta quarta-feira, 1º. Eles responderão pelo homicídio simples com dolo eventual de 242 pessoas e outras 636 tentativas de homicídio.

O julgamento terá início diariamente sempre 9h, e não parará aos fins de semana. De acordo com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), a expectativa é que o julgamento seja o mais longo da história do estado. Já é um dos mais complexos, e envolve, ao todo, cerca 200 servidores de 20 setores diferentes do TJRS. O Ministério Público pedirá condenação e prisão dos quatro réus envolvidos na tragédia.

Os efetivos de segurança estarão reforçados, e o TJ-RS contará com apoio das forças de Segurança Pública e da Brigada Militar. Eles estarão presentes tanto no Foro quanto no entorno dos hotéis em que estarão hospedadas as testemunhas e os jurados, como forma de garantir a segurança dos envolvidos.

O tribunal do juri é composto pelo Juiz  Orlando Faccini Neto, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri da Comarca de Porto Alegre, e outros sete jurados a serem escolhidos por meio de sorteio na própria quarta-feira.  Ao longo do julgamento, serão escutadas, ao todo, 20 testemunhas, escolhidas pelo MP e pelos advogados dos acusados, além de 14 vítimas. Entre as testemunhas, estão o ex-prefeito de Santa Maria César Schirmer e o Promotor de Justiça Ricardo Lozza.

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Defesa teve pedidos negados

No dia 8 de novembro, a defesa de Luciano Bonilha Leão, o produtor musical, teve negada seu pedido para realizar a demonstração de um sinalizador durante o tribunal do júri. Inicialmente o pedido fora de que a reprodução fosse feita dentro do plenário. O pedido, no entanto, foi negado. Posteriormente, a defesa pediu novamente por uma permissão para realizar a demonstração, mas dessa vez de uma área externa. A negativa do juiz se repetiu. Em sua decisão ele alegou questões de segurança:

“Um caso com as singularidades do presente, arriscar, por mínimo que seja, a segurança dos jurados, das partes ou dos demais intervenientes, mostra-se incompatível com qualquer visão que se possa adotar acerca da plenitude de defesa”, escreveu.

O início do incêndio que matou os 242 jovens que estavam presentes na festa da Boate Kiss é atríbuido justamente ao uso de um sinalizador pelo vocalista da banda Gurizada Fandangueira. As faíscas do dispositivo teriam entrado em contato com a espuma que revestia o teto do estabelecimento dando início ao fogo.

MP atento com manobras

O Ministério Público do Rio Grande do Sul confirmou no dia 24 de novembro que vai pedir a condenação e prisão dos quatro réus envolvidos na tragédia da Boate Kiss, que deixou 242 mortos e 636 feridos em janeiro de 2013.  De acordo com Julio Cesar de Melo, subprocurador de Justiça para assuntos institucionais do MP, o órgão está atento a qualquer manobra processual que tenha a intenção de suspender, adiar ou interromper o julgamento na data prevista.

Para a promotora Lúcia Helena Callegari, a maior preocupação, neste momento, é a garantia de que o julgamento, aguardado por mais de oito anos, tenha “início, meio e fim”.

“Eu imagino que nós tenhamos 15 dias de julgamento, com o resultado que a sociedade espera. O Ministério Público já está dizendo, desde agora, que no julgamento irá pedir a prisão dos quatro. Não se está falando em vingança, está se falando em justiça, em uma resposta. O meu espírito, enquanto promotora, é condenar, porque eles praticaram os fatos. A denúncia apontava homicídio qualificado. Infelizmente, só podemos levá-los a julgamento por homicídio simples, não era esse o objetivo do Ministério Público”, diz a promotora.

O que dizem o MP e as defesas

Inicialmente, o Ministério Público havia incluído dois qualificadores, motivo torpe e meio cruel por emprego de fogo,  descartados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que converteu a acusação em homicídio simples com dolo eventual. A terminologia se refere aos casos em que os acusados sabem dos riscos de suas ações mas, ainda assim, escolhem assumi-los, a despeito dos resultados.

Para o MP, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da Boate Kiss, são responsáveis pelo crime por terem utilizado uma espuma de material inflamável no revestimento acústico do estabelecimento, sem parecer técnico, e por terem contratado um show que usava recursos pirotécnicos. Já Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão seriam responsáveis por terem escolhido usar fogos de artíficio destinados a ambientes externos dentro da casa de shows.

A defesa de Hoffman diz que o empresário não fazia parte da rotina da casa noturna — sua condição seria apenas a de investidor. Por isso, para o advogado Mario Luis Cipriani, ele não deveria ser submetido a júrí popular. De acordo com o advogado Jean Severo, que defende Leão, por não ser músico ou proprietário da casa de shows, mas funcionário da banda, o produtor musical não deveria constar entre os acusados.  A advogada de Marcelo Jesus dos Santos, Tatiana Vizotto Borsa, afirma que o incêndio se tratou de uma fatalidade e de que a banda não utilizava dispositivos sem conhecimento do contratante.  Já o advogado Jader Marques, que defende Elissandro Sporh, afirma que o empresário agiu conforme todas as determinações do poder público relativas ao ramo das casas noturnas.

No dia 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss sediava a festa universitária ‘Agromerado’, quando um sinalizador para ambientes externos foi aceso pelo vocalista da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no evento, dentro da casa de shows. As centelhas disparadas pelo artefato atingiram parte do teto da boate, revestido por uma espuma para isolamento acústico, dando início ao fogo que rapidamente se alastrou.  Com o incêndio, gases tóxicos foram liberados motivando a maioria das mortes, segundo a perícia. A casa noturna não possúia saídas de emergência e extintores de incêndio na validade. Seguranças ainda impediram que parte das vítimas saísse, a mando dos donos, para que pagassem as contas. Ao todo, 600 pessoas ficaram feridas e 242 morreram. 

Em maio deste ano, quando a tragédia completou 100 meses, familiares das 242 vítimas iniciaram um movimento em memória de seus entes e contra a impunidade dos quatro réus. Chamada de “100 meses sem justiça”, a iniciativa contou com lives feitas com sobreviventes, pais de vítimas, juristas e até mesmo personalidades públicas.

“A dor da perda não tem jeito, vai ficar, mas a dor da injustiça aperta ainda mais. É pensar que meu filho morreu em vão, tantos jovens que morreram tentando salvar os amigos”, diz Paulo Carvalho, membro da diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e pai do jovem Rafael, que estava naquela noite na boate.

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