Bolívia, um país à deriva


Por: André Lopes*

19 de novembro de 2025

Estou na Bolívia há alguns meses e, embora mal tenha saído de “La Paz” por questões de saúde, pude presenciar o dia a dia da nação que está no “coração” da América do Sul. Sem saída para o mar – perdida para o Chile na chamada Guerra do Pacífico (1879-1884) – a Bolívia se mostra um país de grandes contrastes. A capital, La Paz, encravada num profundo vale no desértico Altiplano, sofre com o trânsito das cidades latino-americanas que crescem de forma desordenada e sem um mínimo de planificação urbana. Atualmente, o país passa por uma grave crise econômica que, ao que parece, nenhum dos candidatos de todos os espectros políticos oferece solução. Embora nas últimas semanas os conflitos tenham arrefecido, durante meses presenciei os protestos na cidade de La Paz. Protesto e ocupação das ruas parece ser uma prática bastante cotidiana na cidade. Protestos por causa dos salários de professores; protestos por fraudes nas provas de residência médica; protestos porque os mineiros querem abolir leis ambientais; protestos porque os proprietários das vans que fazem o transporte público querem aumentar a tarifa; protestos pela falta de combustíveis que assola o país; protestos por causa do aumento do preço dos alimentos; protesto para derrubar o Presidente da República…Por ser a capital do país as manifestações se concentram em La Paz, mas nos últimos meses começaram a se espalhar pelo interior e outras capitais. Por serem distantes e não possuírem o mesmo sistema de segurança da capital, no interior e em cidades como Cochabamba e Potosí, os protestos têm a tendência de serem mais violentos: nestes lugares já há relatos de conflitos entre os protestantes e as forças de segurança, e algumas fatalidades já ocorreram, inclusive a morte de policiais em circunstâncias que ainda não foram totalmente esclarecidas. Embora as coisas estejam calmas neste momento, já me aconselharam a comprar comida para duas semanas antes das eleições presidenciais de agosto: o motivo é que parece que já é de praxe o recrudescimento dos protestos, bloqueios e conflitos! E levando em conta a crise econômica atual – e o total descrédito da população por parte dos candidatos – tudo leva a crer que a população irá para a ruas em peso. Pode parecer estranho, mas foi justamente esse clima de instabilidade política que me fez escolher a Bolívia quando saí do Brasil. Após meu mestrado em Desenvolvimento Sustentável e Recursos Naturais na Universidade das Nações Unidas, parti para a Bolívia para fazer uma pesquisa de doutorado no que seria “desenvolvimento sustentável indígena e movimentos sociais indígenas com caráter nacionalista”; de certa forma, parti em busca do “nacionalismo indígena” defendido pelo sociólogo e filósofo peruano José Carlos Mariátegui. Uma filosofia muito esquecida por parte do espectro político latino-americano. Sendo Evo Morales o único líder “indígena e nacionalista” ainda atuante no cenário politico da América do Sul, assim como o fato de a Bolívia possuir uma população aimara politicamente organizada e atuante desde a colonizaçao espanhola, parti para o centro do continente em busca de material para minha tese. De fato não tenho muito do que reclamar até o momento: Bolívia tem se mostrado um caudatário para movimentos políticos de todos os espectros ideológicos. Ainda não tive a chance de ir para o interior, mas muito em breve, se os bloqueios permitirem, irei procurar nos mais reconditos lugares deste território a origem do movimento aimara, para alguns nacionalista, para outros de “descolonização”. O fato é que o componente indígena é realmente significativo, e fica difícil determinar onde termina o ideologia nacional e começa o sentimento de libertação indígena de uma opressão de centenas de anos, que permaneceu após a declaração da República, e nunca abandonou muitas de suas práticas coloniais, entre estas o racismo e o preconceito por parte das “elites” descendentes de Espanha para com a população indígena. Torna-se difícil construir qualquer nação fraturada pelo racismo. Os contrastes sociais da Bolívia são tão singulares quanto seus contrastes geográficos. Na fronteira peruana, a Cordilheira dos Andes se divide em duas cadeias de montanhas que, ao se separarem, dão lugar ao grande Antiplano tal qual um anfiteatro. Este Altiplano, em sua grande parte desértico, mas também com alguns pontos de vegetação arbustiva em meio à “puna” andina, encontra seu limite somente na fronteira sul com o Chile, onde as duas cadeias de montanhas voltam a se unir formando apenas uma Cordilheira que vai até a Terra do Fogo, no sul do continente. A puna andina do Altiplano é uma região seca e fria, e apenas permite a criação de camelídeos e a possibilidade de alguns tubérculos que resistem aos rigores do clima. A medida que nos afastamos da Cordilheira Oriental e nos aproximamos das baixas altitudes, surgem os “Yungas”, as florestas subtropicais que, ao nos aproximarmos do Brasil e da Argentina, dão lugar à floresta amazônica e às planícies alagadas do “Charco” boliviano, respectivamente. Sim, a Bolívia é de fato um país de contrastes. A cidade de La Paz se encontra em um profundo vale desértico, quase não existe “verde”, a não ser por alguns pontos de vegetação que resistem à erosão das paredes verticais que sustentam os teleféricos que trazem todos os dias a força de trabalho que reside no “El Alto”, uma cidade que tem a função de ser uma periferia da capital, onde reside em sua imensa maioria a população de baixa renda. “El Alto” está aproximadamente a uns 3900 metros de altitude (300 metros acima do centro de La Paz) e possui um clima muito mais frio que a capital. Algumas vezes ocorrem nevascas e, no inverno, não é incomum que alguns dias as águas das torneiras estejam congeladas, dificultando o acesso à água nas casas. A população, que sobrevive do comércio informal, vive sem calefação e em condições muito mais precárias que La Paz. Em algumas localidades, os cidadãos têm como sua primeira língua o aimara ou quechua. Quando ocorrem os protestos em La Paz, a população de El Alto costuma vir pela estrada que desce a montanha em ziguezague até o centro da cidade. Quando criança, lembro que a primeira vez que “conheci” a Bolívia foi através da enciclopédia de geografia “GEO” de meu irmão. Lembro haver “escalado” a estante e alcançado o volume que dizia “América do Sul”. Ao folhear as páginas apareceu rapidamente a Bolívia e três coisas me chamaram muito a atenção: uma fotografia do deserto boliviano, a fotografia da cidade colonial de Sucre e as vestimentas coloridas da população local. As cores das vestimentas andinas são extremamente vivas, como se quisessem contrastar com as rochas e a areia monocromática do Altiplano. Neste momento que escrevo, parece que houve uma certa calmaria na tempestade. Entretanto, Evo Morales segue tentando candidatar-se a presidente, e não se sabe que tipo de conflitos isso ainda pode provocar no país. Fruto de um Lawfare, semelhante ao presidente Lula, ele enfrenta graves acusações de abuso sexual de menores, e inclusive um possível filho que, curiosamente, está desaparecido. Alguns dizem que foi escondido por Evo para ocultar seu crime. Mas em meio ao fato de que a campanha política sul-americana caminha de mãos dadas com a campanha midiática – a guerra híbrida se tornou uma constante na política – acredito que tudo é possível: até mesmo que no futuro fique esclarecido que tudo foi um processo de destruição de reputação fruto de um “Lawfare”. Mas esta é apenas a opinião deste escritor. De fato, o processo judicial e o caso “Evo Morales” segue correndo em meio às brumas do embate político – e geopolítico – do nosso continente meridional. A campanha eleitoral está dividida entre um dos herdeiros da esquerda boliviana e candidatos que possuem uma pauta exclusivamente neoliberal. Na realidade, nenhum dos candidatos apresenta uma solução para a crise econômica de um país muito pobre que, durante um certo período, graças à bonança dos preços das “commodities” no início do século XXI, conseguiu pela primeira vez conceder alguns avanços sociais para a maioria do seu povo, notoriamente os aimaras. O grande problema é que parece que foi justamente isto que ocorreu: em meio do “boom” das matérias primas, a Bolívia viveu alguns tempos de bonança, mas, sendo um país imensamente dependente do financiamento externo e da venda de “commodities”, não possui uma economia sólida para fazer frente a um mundo onde o comércio internacional se retrai e as economias nacionais se voltam ao mercado interno. A debacle do neoliberalismo deixou muitos órfãos pelo mundo, e acredito que, infelizmente, a Bolívia será um deles. A verdade é cruel, mas um país que não possui indústria em um sistema internacional de blocos econômicos tem a tendência de se tornar um pária internacional ou vender todos seus bens e recursos naturais no “atacado”, como tem feito a Argentina do presidente Milei, o que, na prática, se trata se também se tornar um pária…a longo prazo.

Como diz o professor José Luís Fiori, o Mercosul acabou: existe hoje apenas como uma organização formal. Anos atrás, escutei de um decano de relações internacionais da UERJ, um vaticínio bastante realista: “o problema André é que esses países da América do Sul não possuem a qualificação técnica para realizar esse empreendimento…Até nós temos dificuldades de encontrar qualificação técnica, embora tenhamos gente qualificada…Mas nos demais países da América do Sul é muito difícil…enquanto os liberais que estudam na Universidade de Chicago aprendem muito bem o que precisam fazer e são enviados para aplicar aqui; e o fazem com competência. Quer dizer…não aprovamos o que vem fazer aqui, mas eles o fazem com competência. É preciso criar gente qualificada para fazer frente a isso, mas é difícil”…Bem, mesmo sem fazer frente aos “legionários” do neoliberalismo, este caiu por terra, mas uma parte da população ainda não percebeu e, infelizmente, acredita que a solução para uma América do Sul destruída por políticas neoliberais seja…mais políticos que defendam políticas neoliberais. Assim elegeu a maioria do povo argentino da última eleição…e boa parte da população sul-americana pensa assim, resultado de um trabalho constante de doutrinação ideológica, principalmente dos meios de comunicação. Como lutar contra uma hegemonia ideológica? Apenas criando uma outra. Mas o espectro da esquerda, em geral, tem sido incompetente e covarde, correndo o risco de ser “varrida do mapa” nas próximas eleições presidenciais sul-americanas. Para Fiori, a América do Sul se tornou irrelevante no sistema internacional interestatal, e, mais do que nunca, os países da espinha dorsal andina dependem do Brasil para sobreviver. Parece arrogante dizer algo assim…mas a realidade é que, com a debacle do Mercosul, nosso país se tornou o responsável pelo desenvolvimento econômico dos nossos irmãos sul-americanos. Talvez com exceção da Venezuela se esta conseguir apoio necessário da Rússia e da China para contornar a bloqueio econômico que enfrenta há duas décadas: não é uma coincidência que a Venezuela foi o país que mais cresceu economicamente na região no ano passado (6.2% de acordo com a CEPAL). Talvez seja por isso que tenha saído dos noticiários nos últimos tempos. A economia brasileira se tornou o grande motor para tirar da crise os demais países da América do Sul, incluindo, sem dúvida, a Bolívia. A questão, pelo que vejo, será política: os presidentes defensores do Consenso de Washington não terão como meta uma parceria com o Brasil. Isto, a médio, ou até mesmo a curto prazo, levará estes países em crise, como a Bolívia, ao caos social. No entanto, aqueles que planejam a política econômica para a América do Sul em “think tanks” (a exemplo da “RAND CORPORATION”), assim como seus representantes nos parlamentos sul-americanos, têm apenas dois objetivos em mente: respectivamente, como impedir a influência crescente de Rússia e China na América do Sul, e como saquear seu próprio país e enviar o “assalto” a paraísos fiscais. São estas as razões de sua existência…tal qual parasitas. Hoje vivemos na América do Sul um avanço da extrema direita em meio ao “ultra-neoliberalismo”, às fraudes eleitorais e ao “Lawfare”. Tudo isso com o objetivo de espoliar os recursos naturais e submeter o que resta de soberania de seus países, a exemplo da Argentina, do Perú e do Equador. Como disse o professor Eliais Jabbour recentemente, a esquerda nacionalista precisa retornar. Em muitos aspectos – e direi algo que pode parecer polêmico aqui – às vezes penso que o espectro político que dividia a “esquerda” e a “direita” desapareceu: trata-se agora de uma luta pela soberania e sobrevivência dos povos. Serão tempos difíceis, não tenho dúvidas, e aqueles países que ficarem à deriva como a Bolívia ficarão para trás, ou pior, poderão ser esmagados pela penúria e a violência social. Claro que ao levantar e lutar, países pobres e com infinitas disparidades, podem ser esmagados de uma forma muito mais impiedosa, como estamos vendo na atualidade mundo afora…Termino aqui fazendo duas perguntas àqueles que estão lendo este artigo: Que tipo de Brasil queremos deixar para nossos filhos? Vale a pena viver de joelhos?

(*)André Lopes é graduado em Direito e mestre em Desenvolvimento Sustentável e Recursos Naturais pela UPeace: Universidade das Nações Unidas.

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