BR-319: Governo cometeu crime contra licenciamento ambiental


Por: Lucas Ferrante - Especial para Cenarium *

21 de setembro de 2024
BR-319: Governo cometeu crime contra licenciamento ambiental
BR-319, a rodovia que corta a Amazônia (Dnit)

O Ministério dos Transportes, através do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), voltou ao TRF1 no último dia 14 de setembro para apresentar um suposto estudo ao desembargador Flávio Jardim, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), como parte do recurso que pede a derrubada da decisão da 7ª Vara Federal no Amazonas, que suspende a licença para o ‘trecho do meio’ da rodovia BR-319.

Entretanto, o Ministério dos Transportes e DNIT ignoraram estudos científicos revisados por pares e publicados em periódicos científicos, além de parecer técnico enviado aos mesmos. No dia 25 de fevereiro deste ano, o Ministério dos Transportes me requisitou oficialmente, via e-mail, estudos sobre a rodovia BR-319. No mesmo dia, enviei um parecer técnico formalmente assinado ao Ministério dos Transportes, informando a inviabilidade ambiental, climática, econômica, social e de saúde pública do empreendimento, com cerca de dez artigos científicos revisados por pares anexados, que foram completamente ignorados.

Segue o conteúdo do parecer:

Parecer ao GT BR-319 e ao Ministério dos Transportes

Com base nos artigos científicos revisados pelos pares, conclui-se que a concessão da licença de instalação da rodovia BR-319 ou o prosseguimento da licença de manutenção da Rodovia BR-319, independente do trecho, acarreta danos para a biodiversidade1,2, povos tradicionais que historicamente ocupam a área3,4,5, aumento do crime ambiental com conivência de órgãos de fiscalização5,6, aumento de endemias já constatado como aumento das disparidades em saúde pública no estado do Amazonas7 e risco iminente de novas pandemias7,8. Além disso, o aumento do desmatamento na área devido a maior trafegabilidade desde a emissão da licença de manutenção em 20154, já tem causado alterações climáticas severas na região amazônica, com consequências de perda de biodiversidade não apenas na Amazônia central1, mas também além das fronteiras amazônicas2. Destaca-se ainda a perda de serviços ecossistêmicos em curso, que já afetam espécies ameaçadas de extinção em outros biomas, agricultura, indústria e abastecimento humano nas regiões mais populosas do Brasil, como a perda de transporte de chuvas pelos “rios voadores amazônicos” às regiões Sul e Sudeste do Brasil2. Ademais, estudos recentes têm apontado que a Amazônia está no seu limiar de desmatamento tolerado9, sendo a rodovia BR-319 uma ponta de lança para levar o bioma além do seu limite10. Logo, com base na farta literatura científica, que inclusive demonstra que outros modais de transporte são economicamente mais viáveis para a região, como o transporte por barcos e balsas pelo Rio Madeira7, a concessão da licença de instalação e o prosseguimento da licença de manutenção da Rodovia BR-319 caracterizar-se-ão como grave violação do artigo 225 da Constituição Federal: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Desta forma, destaco ao GT BR-319 e ao Ministério dos Transportes a importância de considerarem a literatura científica publicada em periódicos especializados. Ignorar esses fatos incorreria em crime de administração ambiental, conforme os artigos 66 e 67 da Lei nº 9.605/98: Art. 66. Fazer o funcionário público afirmação falsa ou enganosa, omitir a verdade, sonegar informações ou dados técnico-científicos em procedimentos de autorização ou de licenciamento ambiental: Pena – reclusão, de um a três anos, e multa. Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público: Pena – detenção, de um a três anos, e multa. Destaca-se ainda que as repercussões zoonóticas, que podem resultar em risco de uma nova pandemia7,8, bem como a perda de serviços ecossistêmicos2,3, não podem ser mitigadas por obras de engenharia. Desta forma, conforme apontado nos dois maiores periódicos científicos do mundo, a Science e a Nature, o Governo Brasileiro deve reverter as obras da rodovia BR-319.

Referencias:

1. Ferrante, L., Rojas-Ahumada, D., Menin, M., Fearnside, P.M. (2023). Climate change in the Central Amazon and its impacts on frog populations. Environmental Monitoring and Assessment, 195, 1421.

2. Ferrante, L., Getirana, A., Baccaro, F.B., Schongart, J., Leonel, A.C.M., Gaiga, R., Garey, M.V. & Fearnside, P.M. (2023). Effects of Amazonian flying rivers on frog biodiversity and populations in the Atlantic Rainforest. Conservation Biology, 37, e14033.

3. Ferrante, L., Andrade, M. B. T., Leite, L., Antônio Silva, C., Jr., Lima, M., Geraldo Coelho, M., Jr., Carvalho da Silva Neto, E., Campolina, D., Carolino, K., Maria Diele-Viegas, L., Johnson de Area Leão Pereira, E., & Martin Fearnside, P. (2021). Brazils Highway BR-319: The road to the collapse of the Amazon and the violation of indigenous rights. Die Erde – Journal of the Geographical Society of Berlin, 152, 65–70.

5. Ferrante, L., Andrade, M.B.T. & Fearnside, P.M. (2021). Land grabbing on Brazil’s Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestation. Land Use Policy, 108, 105559.

6. Andrade, M., Ferrante, L., & Fearnside, P. M. (2021). Brazil’s Highway BR-319 demonstrates a crucial lack of environmental governance in Amazonia. Environmental Conservation, 48, 161-164.

4. Ferrante, L., Gomes, M. & Fearnside, P.M. (2020). Amazonian indigenous peoples are threatened by Brazil’s Highway BR-319. Land Use Policy, 94, 104548.

7. Ferrante, L. & Fearnside, P.M. (2023). Brazil’s Amazon Oxygen Crisis: How Lives and Health Were Sacrificed During the Peak of COVID-19 to Promote an Agenda with Long-Term Consequences for the Environment, Indigenous Peoples, and Health. J. Racial and Ethnic Health Disparities, https://doi.org/10.1007/s40615-023-01626-1

8. Ferrante, L. & Becker, C.G. (2024). Brazil must reverse gear on Amazon road development. Nature, 626, 33.

9. Flores, B.M., Montoya, E., Sakschewski, B. et al. (2024). Critical transitions in the Amazon forest system. Nature, 626, 555–564.

10. Ferrante, L., & Fearnside, P.M. (2020). Amazon’s road to deforestation. Science, 369,634.

Diante disso, fica claro que o Ministério dos Transportes e o DNIT têm ignorado pareceres técnicos e estudos científicos que mostram a inviabilidade do empreendimento, incorrendo em crime contra a administração ambiental, conforme os artigos 66 e 67 da Lei nº 9.605/98.

É iminente a necessidade de o desembargador Flávio Jardim considerar os estudos científicos revisados por pares, dados os danos que o empreendimento pode causar à Amazônia, às comunidades indígenas e ao clima global. O Ministério Público deve também cumprir seu papel e representar contra os lobistas do DNIT e do Ministério dos Transportes por crime contra a administração ambiental, conforme os artigos 66 e 67 da Lei nº 9.605/98, no processo de licenciamento da rodovia BR-319.

(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), onde em sua tese avaliou as mudanças contemporâneas da Amazônia, dinâmicas epidemiológicas, impactos sobre os povos indígenas e mudanças climáticas e seus efeitos sobre a biodiversidade e pessoas. É pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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