BR-319: O destino da Amazônia, dos povos indígenas e do planeta nas mãos do desembargador Flávio Jardim


Por: Por Lucas Ferrante*

23 de setembro de 2024
BR-319: O destino da Amazônia, dos povos indígenas e do planeta nas mãos do desembargador Flávio Jardim
Desembargador Flávio Jardim (Composição: Paulo Dutra/Cenarium)

Em uma publicação no periódico científico Nature, sobre a BR-319, foi apontado que a ciência serve para guiar a tomada de decisão responsável e que o bem-estar ambiental não deve ser negociado. Preocupantemente, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) voltou ao TRF1 no último dia 14 de setembro para apresentar um suposto ‘estudo’ ao desembargador Flávio Jardim, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), como parte do recurso que pede a derrubada da decisão da 7ª Vara Federal no Amazonas, que suspende a licença para o trecho do meio da rodovia BR-319. A OAB também apresentou ao TRF1 uma manifestação favorável. Entretanto, o que a OAB não fez foi manifestar-se sobre a necessidade de consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas impactados pelo empreendimento, demonstrando assim aplicar dois pesos e duas medidas.

Na segunda-feira, dia 16 de setembro, tive uma reunião com o desembargador Flávio Jardim, na qual apontei a necessidade de manter a decisão que mantém suspensas as obras da rodovia BR-319. Tal recomendação é pautada em estudos revisados por pares e publicados nos maiores periódicos científicos do mundo, derrubando definitivamente os estudos de literatura cinza (estudos encomendados e não revisados por pares) que o Dnit insiste em utilizar como sendo suficientes para apontar a ‘sustentabilidade’ do empreendimento. É importante destacar que o Dnit e os estudos ambientais aprovados pelo Ibama em 2022 ignoraram todos os estudos revisados por pares e publicados em periódicos científicos até hoje, sendo papel do Ibama considerar obrigatoriamente esses estudos.

Inconstitucionalidade da licença e Violação dos direitos dos povos indígenas

O direito de consulta é estabelecido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, e por um decreto presidencial de 2019. As consultas aos povos tradicionais, como estabelece a Convenção 169 da OIT, defendem que povos tradicionais que tenham seus territórios afetados por grandes empreendimentos têm direito a uma consulta prévia, livre e informada. A consulta é prévia porque deve ser realizada antes do empreendimento; informada, pois as comunidades precisam estar cientes de todos os danos que os empreendimentos podem causar nos territórios afetados; e livre, pois os povos não podem ser consultados contra sua vontade ou forçados a aceitar o empreendimento. Desta forma, a manutenção da licença antes da consulta é uma violação dos direitos dos povos afetados pelo empreendimento.

Em um estudo publicado no periódico científico Land Use Policy, foi apontado que a rodovia BR-319, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, no Amazonas, impacta direta e indiretamente 63 terras indígenas oficialmente reconhecidas, cinco comunidades fora de áreas oficialmente reconhecidas e uma população de indígenas isolados. A população de indígenas isolados encontra-se no município de Tapauá, em uma área sob extrema pressão de madeireiros e grileiros, como apontou um segundo estudo publicado na Land Use Policy.

DNIT comete lobby e atua de má-fé:

Um estudo publicado no Journal of Racial and Health Disparities apontou que o DNIT esteve envolvido em práticas de lobby, omitindo informações cruciais sobre a rota mais eficaz para o transporte de oxigênio, com o objetivo de manipular a opinião pública sobre a BR-319. Segundo o estudo, o DNIT negligenciou a opção pelo Rio Madeira, que estava em seu período de melhor trafegabilidade. A escolha da BR-319 resultou em um prolongado tempo de transporte de 96 horas, enquanto a alternativa fluvial poderia ter entregue o oxigênio em Manaus em um intervalo de 30 a 56 horas, potencialmente salvando dezenas de vidas. O estudo também destaca que a opção pela rota rodoviária acarretou custos adicionais significativos, totalizando 1,5 milhões a mais em comparação com a alternativa pelo Rio Madeira. O mesmo estudo também apontou que as audiências públicas dos estudos ambientais aprovados pelo IBAMA não contaram com a presença das comunidades tradicionais impactadas.

Risco pandêmico global:

Duas publicações recentes, uma no periódico Nature e outra no periódico The Lancet, o maior periódico científico do mundo e o maior periódico médico do mundo, respectivamente, alertam para as graves consequências da pavimentação da rodovia BR-319 na Amazônia, tanto para a biodiversidade quanto para a saúde pública global. Embora o governo brasileiro tenha se comprometido com a meta de desmatamento zero até 2030, a aprovação da pavimentação da rodovia expõe vastas áreas de floresta preservada a atividades predatórias, como pecuária, mineração e exploração de petróleo. As publicações destacam que a abertura de estradas em áreas de alta biodiversidade aumenta os riscos de transmissão de doenças zoonóticas, incluindo possíveis novas pandemias, ao mesmo tempo que ameaça comunidades indígenas e ecossistemas locais.

Como destacado pela publicação no periódico The Lancet: “Os defensores da rodovia argumentam que os problemas ambientais resultantes poderiam ser resolvidos por meio de uma Estrada Parque (uma estrada que corta uma área designada para preservação ambiental) e projetos de engenharia; no entanto, tais propostas são contraintuitivas e anticientíficas, uma vez que o limite de tráfego mais alto e o maior acesso à região levaram ao aumento do desmatamento e facilitaram transbordamentos zoonóticos. Os tomadores de decisão devem entender que este não é um problema de engenharia, mas uma questão ambiental e de saúde pública”.

Ao final da minha apresentação ao desembargador Flávio Jardim, no dia 16 de setembro, chamei a atenção para uma recomendação dada em um segundo estudo publicado no Journal of Racial and Health Disparities: Monitoramento e a ação precoce para conter a COVID-19 ou qualquer outra zoonose são essenciais para interromper uma pandemia. O monitoramento inadequado ou teorias infundadas sobre a remissão de uma epidemia podem ser catastróficos, como no caso de Manaus. Acreditamos que práticas científicas questionáveis ​​são comuns em Manaus e, em nossa opinião, isso poderia ter sido evitado, ou pelo menos mitigado, pela adoção de dois princípios orientadores bastante simples: (1) hipóteses científicas sensíveis devem ser publicadas em periódicos científicos indexados; e (2) ao relatar literatura científica, os meios de comunicação devem buscar orientação de cientistas que podem ajudar a distinguir entre periódicos confiáveis ​​e literatura cinzenta”.

Desta forma, fica evidente que decisões do judiciário de ignoraram estudos científicos revisados por pares já trouxe sérias consequências para a cidade de Manaus e o estado do Amazonas. Neste momento, o judiciário, por meio do desembargador Flávio Jardim, não pode repetir o erro de desconsiderar a ciência, pois os danos de uma decisão equivocada irão muito além dos prejuízos sofridos por Manaus e pelo estado do Amazonas. Estamos falando de um aumento nas endemias já provocadas pelo desmatamento crescente no trecho central da rodovia BR-319, da intensificação das invasões em terras indígenas, do desmatamento ilegal e da grilagem de terras. Há também a ausência de governança, uma vez que o estado do Amazonas tem sido conivente com essas invasões e desmatamento, evitando fiscalizar áreas críticas. Além disso, já são visíveis os impactos sobre serviços ecossistêmicos, como os ‘rios voadores’, que são fundamentais para o abastecimento das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Somam-se a isso os alertas de risco de vazamentos zoonóticos, com potencial de desencadear uma série de novas pandemias.

O Gráfico mostra números anuais de casos positivos de malária no município de Manicoré (que é cortado pelo trecho médio da Rodovia BR-319) em relação ao desmatamento anual do trecho. O ano de 2015 marca o início da manutenção e trafegabilidade da Rodovia BR-319, após seu abandono. Os dados sobre o número de casos de malária foram obtidos do Centro de Endemias de Manicoré. Os dados anuais de desmatamento do trecho médio da Rodovia BR-319 foram extraídos do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Brasileira (PRODES) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) do Brasil. Gráfico de estudo publicado no Journal of Racial and Health Disparities.

Imagem de um estudo publicado no periódico Conservation Biology, que mostra que as células de alta pressão, responsáveis pela formação das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, se originam nas vastas áreas de florestas cortadas e acessadas pela rodovia BR-319.

Imagens de um estudo publicado no periódico Conservation Biology mostram que as anomalias climáticas intracontinentais se sobrepõem ao arco do desmatamento da Amazônia, sendo a região AMACRO (Amazonas, Acre e Rondônia) um dos pontos mais críticos. O mesmo estudo apontou que, se pavimentada, a rodovia BR-319 faria essas anomalias migrar para a Amazônia central, aumentando o desmatamento, agravando a seca, intensificando incêndios e levando a Amazônia além do limite de degradação e desmatamento tolerados.

Amazônia e futuro do planeta nas mãos do desembargador Flávio Jardim

Com o devido respeito e consideração à eminente posição e ao papel crucial que Vossa Excelência, desembargador Flávio Jardim, desempenha na preservação da justiça e do equilíbrio ecológico, venho por meio desta, humildemente, instar a ponderação das recomendações científicas que enfatizam a necessidade de cautela na gestão de nossos preciosos recursos naturais. É notório que a pavimentação da rodovia BR-319, sem a consulta dos povos indígenas impactados, sem as devidas salvaguardas e sem que a governança chegue antes ao território, acarreta consequências severas tanto para o bioma amazônico, que está no seu limiar de desmatamento tolerado, quanto para os povos tradicionais, cujos direitos estão sendo violados pela manutenção da licença antes das consultas prévias, livres e informadas, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.

Ao considerar a manutenção da suspensão desta licença, Vossa Excelência não apenas protege o presente, mas também se posiciona como um guardião do futuro. Suas decisões ecoarão através do tempo, servindo de baluarte contra as adversidades que nossas gerações futuras poderão enfrentar. A ciência não é apenas um corpo de conhecimento, mas uma bússola que nos guia na direção da sustentabilidade e da coexistência harmoniosa com a natureza.

As gerações vindouras olharão para trás com gratidão, lembrando-se daqueles que tiveram a coragem e a visão de ouvir os especialistas, agir com prudência e colocar o bem-estar coletivo acima de interesses imediatistas. Confiamos que suas ações refletirão essa sabedoria, e que a história registrará Vossa Excelência como um defensor intransigente do meio ambiente e da justiça socioambiental.

(*) Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde, em sua tese, avaliou as mudanças contemporâneas na Amazônia, as dinâmicas epidemiológicas, os impactos sobre os povos indígenas e as mudanças climáticas e seus efeitos sobre a biodiversidade e as populações. É o pesquisador brasileiro com o maior número de publicações como primeiro autor nos dois maiores periódicos científicos do mundo, Science e Nature. Atualmente, é pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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