Brasil tem número crescente de leis que buscam reprimir direitos de pessoas trans
29 de janeiro de 2024

Da Revista Cenarium*
SÃO PAULO (SP) – O Brasil tem um número crescente de leis que buscam cercear direitos de pessoas trans. Segundo levantamento da Folha há, pelo menos, 77 leis municipais e estaduais antitrans, em vigor, em 18 Unidades da Federação (UFs) — mais de um terço dessas normas entrou em vigor ano passado.
Proponentes dessas leis negam que elas tenham caráter antitrans, afirmando que ajudam a proteger os direitos de crianças e mulheres e a resguardar a liberdade religiosa. Por outro lado, especialistas dizem que essas normas promovem a institucionalização da transfobia e podem estimular a violência contra uma das parcelas mais marginalizadas da população.
Boa parte dessas normas veda o uso da chamada linguagem neutra ou impede debates sobre a temática de gênero nas escolas, contrariando decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao menos 11 leis antitrans já foram consideradas inconstitucionais pela Justiça.

Há também restrições ao compartilhamento de banheiros e à participação de atletas trans em competições esportivas. Outras normas proíbem crianças e adolescentes trans de acessar determinados serviços de saúde e de participar de Paradas do Orgulho LGBTQIAPN+. Existem, ainda, leis que buscam censurar materiais publicitários com conteúdos alusivos à diversidade de gênero.
O número de normas antitrans em vigor pode ser ainda maior, uma vez que a busca de leis municipais se restringiu a cidades com mais de 100 mil habitantes. Esses locais concentram 57% da população do País, mas representam somente 5,7% do total de municípios, de acordo com dados do Censo de 2022 do IBGE.
As primeiras leis deste tipo no País foram promulgadas em 2015, em Novo Gama (GO), uma cidade-satélite de Brasília. Uma delas, que proíbe o ensino da chamada ideologia de gênero nas escolas do município, foi considerada inconstitucional pelo STF em 2020.

O ritmo de produção dessas normas acelerou a partir de 2021. Naquele ano, foi promulgada, em Rondônia, a primeira lei estadual antitrans, que proíbe a linguagem neutra nas escolas — o STF declarou a sua inconstitucionalidade ano passado, por entender que o assunto é de competência da União e foge da alçada dos Estados e municípios.
Em 2023, com a ida do bolsonarismo para a oposição, no Congresso Nacional, a agenda antitrans se consolidou como prioridade desse grupo político no Legislativo. O País ganhou, em média, uma nova lei do tipo, a cada duas semanas, ao longo do ano passado.
Em Boa Vista (RR), há quatro leis antitrans em vigor. Nos últimos dois anos, passou a ser proibido debater gênero, usar linguagem neutra e instalar banheiros unissex nas escolas do município, e também entrou em vigor uma lei de veto esportivo.
A refugiada venezuelana Paola Abache, que é trans, relata já ter sido impedida de acessar banheiros femininos na cidade. Jogadora de vôlei, também diz ter sido proibida de jogar com outras mulheres devido à sua identidade de gênero.
“Na Venezuela, eu sofria discriminação porque o País, infelizmente, não tem leis para proteger a população trans. Pensei que aqui no Brasil os nossos direitos seriam respeitados, mas não foi o que aconteceu”, afirma.

Quando soube da existência das leis antitrans, Abache, 23, diz que “foi como levar um soco”. Por outro lado, a refugiada conta ter sido bem recebida pela comunidade LGBTQIAPN+ da capital roraimense. “Conheci muitas pessoas maravilhosas que abriram as portas para mim. É graças a elas que estou forte”, diz.
Em março do ano passado, a Folha já havia noticiado uma avalanche sem precedentes de projetos de lei antitrans. O novo levantamento identificou 293 Projetos de Lei (PLs) do tipo protocolados em 2023, muitos dos quais seguem em tramitação e podem virar lei no futuro.
À frente está o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas também há propostas de outras legendas, como Republicanos, União Brasil, PP, MDB e PSDB. A agenda antitrans poderá ser explorada por esses legisladores na campanha das eleições municipais de outubro de 2024, segundo analistas.
Para Amanda Souto Baliza, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB Nacional (Organização dos Advogados do Brasil), a estratégia desses parlamentares pode ser descrita como uma “blitzkrieg legislativa”.
A especialista representa entidades da sociedade civil em ações na Justiça para tentar anular os efeitos de algumas dessas leis, mas diz que o volume de normas acaba dificultando o processo.

“É um ataque relâmpago contra os direitos LGBTQIAPN+. Começa quando alguma desinformação contra essa parcela da população viraliza, gerando pânico moral. Daí, grupos extremistas criam um modelo de PL e o distribuem em municípios e Estados. Alguns desses projetos viram lei. Como o fenômeno ocorre ao mesmo tempo, no País inteiro, isso acaba sobrecarregando o movimento social e os tribunais”, afirma.
Baliza pondera que a bancada antitrans ainda não tem uma base forte o suficiente para aprovar leis federais que pudessem promover uma segregação mais intensa. A especialista também lembra que o movimento LGBTQIAPN+ tem se organizado para frear a perda de direitos, mas receia que o cenário se torne mais desfavorável nos próximos dez ou quinze anos.
No final do ano passado, o Senado incluiu na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) proibição para que o Orçamento de 2024 fosse usado em ações para influenciar crianças e adolescentes a fazer transição de gênero, mas o trecho acabou sendo vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Julia Ehrt, diretora-executiva da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Interssexuais (Ilga), vê com preocupação o avanço das leis antitrans no Brasil. Ela lembra que a ofensiva contra os direitos da população LGBTQIAPN+ é um fenômeno que se estende desde democracias consolidadas, como os EUA e o Reino Unido, até regimes autoritários como Rússia e Uganda.
“A narrativa antitrans é parte de um movimento mais amplo contra os direitos LGBTQIAPN+ e das mulheres. Há organizações com muitos recursos que trabalham para avançar essas agendas globalmente”, afirma Ehrt. Ela defende que esses grupos se articulem em nível internacional para fazer frente à ofensiva conservadora.