Câmeras de segurança na África do Sul são acusadas de promover um ‘apartheid 2.0’

Moradores do bairro de Bhambayi queimam pneus em protestos por melhores serviços de fornecimento de água e energia, nos arredores de Durban, em abril de 2022 (PHILL MAGAKOE/AFP)
Com informações do Infoglobo

“Criamos uma solução que não contribui apenas para a eficiência e efetividade, mas também vemos que, com o tempo, ela também contribuirá para o sucesso socioeconômico da África do Sul”. Em entrevista ao site sul-africano Tech Central, em fevereiro de 2019, o cofundador da empresa de infraestrutura digital Vumatel, Niel Schoeman, detalhava um sistema integrado de câmeras de vigilância que, em sua opinião, revolucionaria o setor.

Sistemas de monitoramento não eram algo novo nos subúrbios da África do Sul. Prédios, residências e escolas usam câmeras para proteção há anos. A inovação proposta por Schoeman era integrar essas “ilhas”. Com o emprego de softwares, o empresário prometia analisar todas as imagens e monitorar veículos e pessoas considerados suspeitos.

Em um País com altas taxas de criminalidade, certamente, havia mercado para o novo serviço, que acabou prosperando. O problema é que as empresas de segurança privada, lá, são conhecidas por suas ações consideradas racistas. Sendo assim, surgiu a pergunta: a ideia não seria uma espécie de “apartheid 2.0”? Muitos especialistas acreditam que sim.

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Como ocorre em cidades em todos os continentes, câmeras são parte importante da estratégia de patrulhamento policial. Contudo, como aponta Michael Kwet, pesquisador da indústria de vigilância, a maior parte desses equipamentos é operada por governos. No caso da África do Sul, não.

Na década passada, com a expansão da fibra ótica, especialmente em subúrbios de classe alta e classe média alta, muitos começaram a criar suas próprias redes de segurança, com câmeras mais eficientes e o uso de inteligência artificial para análise das imagens. Esses sistemas conseguem reconhecer comportamentos e notificar anormalidades a empresas de segurança privada responsáveis pelo patrulhamento local.

Com o tempo, novas comunidades foram adotando seus próprios sistemas, mas havia ali uma lacuna a ser explorada.

“E se alguém roubar algo e cometer um crime? Se a pessoa sair de um subúrbio e ir para outro, ela basicamente estará fora daquele sistema de vigilância. Então, você precisaria acessar as imagens de outra rede”, afirmou Kwet, em entrevista ao GLOBO. “E, porquê não criar uma super-rede?”

Privacidade em xeque

Aí entra a Vumacam, uma subsidiária da Vumatel, que propôs o monitoramento único e interligado, e que, hoje, se faz presente nas numerosas torres com câmeras, em Joanesburgo e outras cidades sul-africanas. Ele permite, por exemplo, que os agentes procurem por um tipo específico de comportamento ou reconheçam placas de veículos suspeitos ou roubados para avisar as autoridades ou, mais frequentemente, empresas privadas.

A companhia garante que não usa a tecnologia de reconhecimento facial, ao menos, neste momento, mas em uma cidade onde o transporte individual é massificado, como Joanesburgo, o armazenamento de placas de carros acende alguns alertas.

“Eles não estão, necessariamente, invadindo a privacidade de alguém, mas estão chegando bem perto disso. E, em países como a África do Sul e o Brasil, onde há pouca fiscalização das atividades dessas empresas, provavelmente, estão recolhendo mais informações do que achamos”, afirmou ao GLOBO Ziyanda Stuurman, pesquisadora do setor de segurança e autora do livro “Can We Be Safe? The future of policing in South Africa” (”Podemos estar seguros? O futuro do policiamento na África do Sul”, numa tradução livre).

Estima-se que, atualmente, haja 6,6 mil câmeras da empresa nas ruas de cidades sul-africanas, com 5 mil apenas em Joanesburgo, e há planos de chegar a até 100 mil câmeras, em um sistema nacional de monitoramento privado.

“As comunidades que buscam modernizar seus sistemas de segurança são incentivadas a aderir à Vumacam, uma vez que, caso escolham uma solução diferente e um crime ocorrer em sua vizinhança, elas não terão como descobrir”, afirma Kwet.

A Vumacam é apenas uma parte do extenso mercado de segurança privada na África do Sul: há 11,3 mil empresas registradas, empregando 564.550 agentes, de acordo com a agência responsável pelo setor, quase o dobro do número de policiais e militares.

Os números refletem aquele que é um dos principais problemas da África do Sul: os altos índices de criminalidade, como homicídios, estupros e roubos à luz do dia. A pouca capacidade das forças de segurança levou muitos a destinar parte de seus orçamentos aos prestadores privados que, como lembra Kwet, acabam refletindo as ordens e visões de seus clientes.

“Essas empresas de segurança privadas não são boas em respeitar os direitos humanos. Elas possuem uma ideia muito estreita sobre o que significa proteção e, muitas vezes, pensam ser sinônimo de agir contra determinados perfis raciais, contra os sem-teto e contra pessoas que não parecem fazer parte de uma determinada comunidade”, aponta Ziyanda.

Em 2018, uma empresa de segurança privada divulgou internamente um comunicado com “dicas para identificar suspeitos”, trazendo a imagem de um homem negro e afirmando que o tom da pele era um fator de alerta. Após o vazamento da informação, os responsáveis pediram desculpas, mas, ali, apenas repetiram o que era e ainda é dito em grupos de WhatsApp e de forma reservada. Desde o fim do regime segregacionista, o País constatou o surgimento de uma classe média negra, mas a desigualdade social ainda pode ser percebida pela cor da pele. O nível de pobreza entre os negros é muitas vezes maior.

‘Dompas’ na África do Sul

Kwet vê paralelos com uma antiga política dos tempos do apartheid: o uso de passaportes internos, apelidados de “dompas”, que eram exigidos da população negra e tinham como objetivo garantir a segregação.

Policiais pediam esses documentos em bloqueios de rodovias e, por vezes, eles serviam de justificativa para ações brutais. A ideia de uma sociedade segura para alguns, sem os elementos “indesejáveis”, estaria se repetindo, agora de maneira digital, e gerando milhões de dólares.

“É como se eles quisessem livrar suas vizinhanças de negros pobres. E é essa a conexão com o apartheid. Não acredito que os sistemas sejam assim tão inteligentes ou poderosos. O grande problema para mim é que esses sistemas funcionam em conjunto com forças de segurança racistas, que vão atrás de pessoas que têm o direito de andar nas ruas”, apontou Kwet. “E o governo quer a expansão da Vumacam, visto que ele não tem os recursos adequados para colocar essas câmeras nas ruas”, completou.

Ao GLOBO, Ziyanda aponta, ainda, para uma situação cada vez mais frequente na África do Sul, a colaboração entre forças privadas e as do governo para a contenção de tumultos, como a série de violentos protestos em algumas regiões do País, no ano passado.

“Essa relação mais próxima ocorreu porque os policiais estavam sobrecarregados, precisaram até chamar os militares, e isso não é algo que vejo como positivo. Não acredito que enfraquecer os serviços policiais é algo bom”, afirmou Ziyanda. “Esse tipo de situação pode, eventualmente, surgir no Brasil, e é algo que a sociedade precisa estar atenta. Não é nada positivo constatar esses laços próximos”, afirmou a pesquisadora.

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