‘Carimbó Hype’: movimento resgata ritmo popular no Pará com protagonismo periférico

Dança tradicional paraense vem sendo resgatada com o vigor da mulher artista amazônida e chamando cada vez mais a atenção da juventude (Crédito: Fierce/ Montação: Gabriela Luz)

Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS – Um dos ritmos mais tradicionais do País e que teve origem durante o século 17, no Pará, o Carimbó é fruto da força e união de agricultores que, no tardar da noite, após um exaustivo dia de trabalho, dançavam ao som do instrumento indígena de percussão ‘Curimbó’. Num movimento hype, a dança vem sendo resgatada com o vigor da mulher artista amazônida e chamando cada vez mais a atenção da juventude.

Militante de movimentos sociais e de causas feministas, Priscila Duque, de 34 anos, é cantora e performer paraense, vocalista do grupo Carimbó Cobra Venenosa. Ela é formada em Jornalismo e mestre em Ciências Sociais, ambos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Natural de Belém, a artista retrata, por meio da música e da dança, as vozes das mulheres negras, caboclas e periféricas que lutam por espaços potentes na sociedade.

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“Sou uma mulher negra, amazônica. Moro a maior parte da minha vida no Distrito de Icoaraci. Sou militante dos movimentos sociais e das causas feministas e atuo no protagonismo periférico desde que entrei na universidade pelo movimento estudantil. Sou filha de pessoas que vieram do interior do Estado, da região de Cametá. Minha família (avôs, avós, pais, tias e tios) toda, praticamente, foram coletores e extrativistas da mata, com a retirada de látex, cupuaçu, cacau e andiroba”, conta Priscila Duque.

Com pinturas em neon pelo corpo, que representam a contemporaneidade e identidade construída em seis anos de carreira, Priscila dança o Carimbó (Crédito: Fierce / Montação: Gabriela Luz)

À REVISTA CENARIUM, Priscila lembra que o Carimbó entrou na vida dela de diferentes formas e se fincou num momento determinante e conturbado da trajetória pessoal e profissional que ela tomava, onde nada fazia sentido. “Eu chorava muito. Consumia muito álcool. Estava com uma vida muito desregrada fora do trabalho, quando cheguei para minha mãe e falei queria saber o que fazer na minha vida, porque nada me fazia sentir plena e realizada”, contou.

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À época, em 2016, a reviravolta na vida de Priscila começou quando ela passou a ir com mais frequência ao lugar que conheceu há dez anos: o Espaço Cultural Coisas de Negro, referência em Belém na prática musical do Carimbó, onde ela passou a participar de oficinas de iniciação de instrumentos e de rodas de cânticos. Com uma câmera, tambores, maracás e um banjo, a artista decidiu seguir a carreira musical e, aos 28 anos, começou a cantar e performar pelos cantos de Belém.

Priscila Duque conta que o Carimbó foi o que deu sentido à vida dela (Reprodução/ João Souza)

“O Carimbó foi acalentando meu coração e eu considero que ele foi a cura, o que deu sentido para minha vida. Ainda estou nesse processo de entender e saber ler tudo isso, mas eu considero que o Carimbó foi o conectivo que justamente faltava para mim, porque eu sou negra, indígena, venho de uma comunidade periférica, do interior do Estado, sou amazônida e a cultura popular é a expressão genuína desse povo. Não é à toa que estou dentro dela e não foi à toa que fez sentido para mim”, reforça Priscila.

A dança

O Carimbó é resultado de influências das culturas indígenas, negra e proveniente do Tupi-Guarani Korimbó, onde Kori significa “pau oco” e m’bó “furado”, ou seja, pau oco ou pau que produz som. A expressão também quer dizer “tambor”, instrumento feito de um tronco oco de árvore e indispensável na atuação musical do ritmo paraense. Na execução do bailado, feito em pares e em formação de roda de dança, mulheres e homens se entrelaçam em movimentos sem toque e recheados de sensualidade.

Saias rodadas, longas e coloridas são características marcantes da dança do Carimbó (Gustavo Serrate/Ministério da Cultura)

A dança começa com homens e mulheres frente a frente em uma espécie de roda. O cavalheiro vai em direção às damas e as convidam para dançar batendo palmas. As moças se mexem encantadoramente com suas saias rodadas, coloridas e compridas tentando distrair seus companheiros e atirar a vestimenta na cabeça deles, num episódio que gera gargalhadas.

Em determinado momento, um casal de dançarinos vai para o centro da roda e executa o famoso “Carimbó do Peru”, ou “Peru de Atalaia”. A coreografia faz a mulher deixar um lenço no chão. O homem, por sua vez, é obrigado a apanhar a peça apenas com a boca. Caso o cavalheiro consiga, ele é aplaudido e permanece na dança. Se o contrário acontecer, o rapaz é vaiado e convidado a se retirar.

A manifestação cultural é reconhecida desde 2014 como patrimônio cultural imaterial do Brasil, em votação unânime do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

O Carimbó na periferia

Criado há seis anos, em 2 de maio de 2016, o Carimbó Cobra Venenosa tem atuado no resgate da música e levado o ritmo para as zonas periféricas de Belém, buscando ocupar a cidade com arte e cultura. A vocalista Priscila Duque lembra que quando o grupo começou a ser reconhecido artisticamente, em 2017, o Carimbó passou a influenciar na criação de outras iniciativas formadas por pessoas mais novas.

Da esquerda pra direita, Heron Rodrigues (tambor), Priscila Duque (vocal), Lis Ferreira (maracas) e Astrum Zion (maracas e performance) são os integrantes do Cobra Venenosa (Crédito: João Souza)

“Começamos a movimentar essa cena jovem na cidade. E quando nós surgimos, esse grupo de pessoas que ia dos 20 aos 35 anos, a maior parte das pessoas, convivia comigo. Nessa época, outras iniciativas não tinham tanta visibilidade, mas quando o Cobra começou a crescer artisticamente e ser reconhecido na cidade, praticamente tocamos em todos os lugares e, a partir de 2017, começaram a surgir outros grupos formados por pessoas mais novas e nessa estética mais urbana”, destaca.

Priscila Duque é vocalista do grupo (Crédito: Fierce / Montação: Gabriela Luz)

Priscila afirma que faz parte de um protagonismo importante que pintou Belém de Carimbó com uma personalidade contemporânea e alicerçada a valores de liberdade e transformação que leva o ritmo a ser reconhecido com características mais urbanas na capital. Para a artista, a partir da cultura do Carimbó, a juventude paraense ganha o direito à memória, ancestralidade, representatividade e a ocupar mais espaços na cidade.

“O que os jovens ganham a respeito do Carimbó é o direito à memória, à ancestralidade, à representatividade e a ocupar espaços da cidade com uma cultura genuinamente popular feita, historicamente, pelos trabalhadores de profissões que envolvem um povo que luta e trabalha muito, mas que encontra no Carimbó o direito ao sonho”, comenta Priscila Duque.

Com pinturas em neon pelo corpo, que representam a contemporaneidade e identidade construída em seis anos de carreira, Priscila realiza a dança do Carimbó e questiona os padrões de beleza de vestimentas e maquiagens da sociedade, utilizando materiais recicláveis para elaboração de figurinos.

“O neon, como toda a nossa visualidade, representa essa busca de demarcação de um território, que é contemporâneo porque está sendo feito hoje, contemporâneo na poesia, porque critica valores, padrões e injustiça social e que também coloca no centro uma mulher negra, fora dos padrões, com traços indígenas e periférica”, concluiu.

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