Cerca de 160 milhões de crianças são vítimas do trabalho infantil; atividade impacta relações sociais

Trabalho infantil atinge cerca de 160 milhões de crianças no mundo (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS – A pandemia da Covid-19 evidenciou uma exploração ilegal que persiste e gera danos sociais e psicológicos para inúmeras crianças: o trabalho infantil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) são pelo menos 160 milhões de menores vítimas dessa prática em todo o mundo, um número que cresceu pela primeira vez em 20 anos. A vulnerabilidade das crianças, em contrapartida às imposições de opressores, segundo especialistas, pode explicar esse aumento.

Para o professor e sociólogo Francinézio Amaral, o trabalho infantil pode ser compreendido no campo sociológico como um desdobramento da lógica de exploração da força de trabalho pelo capitalismo. Na avaliação do especialista, é mais barato para os empresários contratarem crianças e adolescentes, uma vez que são totalmente vulneráveis em relação aos seus patrões, estando expostos a todo tipo de assédio moral e, em alguns casos, assédio sexual.

“A partir desse entendimento, o fato de ainda existir trabalho infantil em nossa sociedade deve ser percebido a partir da associação entre essa lógica capitalista e os interesses políticos, onde os governantes têm priorizado os interesses do mercado em detrimento de políticas públicas voltadas para sanar o gravíssimo problema do trabalho infantil”, analisa Amaral.

PUBLICIDADE

Agravamento

De acordo com o relatório “Trabalho Infantil: estimativas globais de 2020, tendências e o caminho a seguir“, divulgado na quinta-feira, 10, pela OIT e o Unicef em alusão Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, celebrado em 12 de junho, mais 8,9 milhões de crianças e adolescentes correm o risco de ingressar no meio ilegal no mundo até 2022, como resultado da pandemia da Covid-19. Para combater a prática, o documento destaca a necessidade de adoção de medidas de proteção para erradicar o caso e evitar o possível aumento.

O crescimento registrado pelas duas instituições contraria a tendência de queda que houve entre 2000 e 2016, quando pelo menos 94 milhões de crianças no mundo saíram do mundo do trabalho. Segundo chama atenção o estudo, o trabalho infantil compromete a educação das crianças, restringindo direitos, limita oportunidades futuras e colabora com ciclos de pobreza viciosos, além de levar risco de danos físicos, mentais e sociais as vítimas.

No Brasil, segundo os últimos dados disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua 2019), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem cerca de 1,758 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil. Desses, 706 mil (40%) exerciam atividades consideradas as piores formas de trabalho infantil.

Em Manaus, 244 crianças estão em situação de mendicância nas ruas de Manaus, sendo 99 crianças vendendo produtos diversos, 60 crianças nos semáforos realizando malabarismo, 53 crianças acompanhadas dos pais nos semáforos e 32 crianças em atividades diversas (ruas, viadutos, farmácias, supermercados). Os dados são do diagnóstico da Ação Conjunta Emergencial contra a Exploração de Crianças e Adolescentes em Situação de Mendicância, iniciado em abril deste ano.

A recomendação de órgãos públicos, ao identificar uma criança ou adolescente em situação de trabalho infantil, é realizar denúncia pelos canais da Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania (Semasc), por meio dos números 0800 092 6644 ou 0800 092 1407, pelo Disque 100 (nacional), ou acionar o Conselho Tutelar.

Desigualdade social

O sociólogo Francinézio Amaral explica ainda que o trabalho infantil está associado aos níveis de desigualdade social e de concentração de riquezas, características de países subdesenvolvidos, como o Brasil. “Mais uma vez, é importante ressaltar que o trabalho infantil é uma das consequências diretas da associação de interesses entre Estado e mercado. Um desdobramento dessa associação é a imposição ideológica da meritocracia que tira as responsabilidades dos agentes do Estado e transfere para os indivíduos”, reforçou.

Os danos às crianças, defende o especialista, são inúmeros e os principais, no aspecto sociológico, se referem à construção das relações sociais delas.

Francinézio Amaral é professor e sociólogo (Arquivo Pessoal)

“O direito a se desenvolver plenamente enquanto ser social é covardemente usurpado, fazendo com que, caso cheguem à vida adulta, se tornem pessoas com perspectivas de vida tímidas e assim aceitem, passivamente, continuar sendo explorados. Inclusive, ao serem convencidos pela lógica meritocrática, quase sempre passam a normalizar a exploração a que estarão submetidos”, continua Amaral.

É possível erradicar o trabalho infantil?

Para o sociólogo Francinézio Amaral, é totalmente possível erradicar com o trabalho infantil no Brasil. Conforme o artigo 7º, XXXIII, da Constituição Federal de 1988 e o artigo 403, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a idade mínima para ingressar no mercado de trabalho brasileiro é 16 anos, exceto na condição de aprendiz, que pode iniciar a trabalhar a partir dos 14 anos. Já a contratação profissional só pode ser feita após os 18 anos.

“É totalmente possível [erradicar]. O Brasil já experimentou muitos avanços no combate ao trabalho infantil. O maior deles foi a consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, temos vividos tempos sombrios e de vários retrocessos nos últimos anos, onde vários ataques aos direitos sociais têm sido realizados pela escalada conservadora e religiosa que penetrou em todas as esferas e instituições de nossa sociedade. É preciso, portanto, combater esses retrocessos, assim como combater a estrutura social pautada na meritocracia, para que possamos vislumbrar a superação total do trabalho infantil”, frisa Amaral.

Criança que trabalha deixa de ser criança?

A criança que é submetida ao trabalho, de acordo o sociólogo, estará sempre prejudicada em formação enquanto ser social. Trocar a brincadeira, o dia a dia comum de uma criança, pelo trabalho infantil, pode causar transtornos num futuro próximo.

“O ato de brincar é elemento fundamental na formação da sociabilidade. Quando isso não ocorre da forma adequada, causa traumas severos ao longo da vida. Uma criança exposta à exploração do trabalho, estará sempre prejudicada em formação enquanto ser social. É por isso que não devemos medir esforços para garantir que nossas crianças e adolescentes tenham o direito de brincar”, conclui.

Uma criança exposta à exploração do trabalho estará sempre prejudicada em formação enquanto ser social, segundo o sociólogo (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Para a terapeuta e psicanalista amazonense, Samiza Soares, o “brincar” tem um significado universal e é uma necessidade para todas as crianças. Segundo ela, o fato que toda criança encontra espaço para brincar, de certa maneira, indica o quão brincar é importante para a sua psique (personalidade).

“O que se discute hoje é a falta de espaço, temporal e físico, para crianças brincarem. O brincar tem um papel muito importante, social e cognitivo, no desenvolvimento, mas que não pode ter início, meio e fim mensurados.

Impactos psicológicos

Samiza Soares elucida à REVISTA CENARIUM que o principal impacto de todo trabalho infantil diz respeito à inversão na dinâmica familiar. Segundo ela, quando a criança é responsável pelo ingresso de uma parte significativa da renda familiar, ela se torna, de certa maneira, a chefe de família.

“Os impactos psicológicos são muito variáveis dependendo do tipo e do contexto social do trabalho. Trabalhos como tráfico e exploração sexual, considerados as piores formas de trabalho infantil, não são aceitos pela sociedade em geral e só trazem uma carga negativa muito grande no psicológico e na autoestima”, salientou.

Samiza Soares explica que o principal impacto de todo trabalho infantil diz respeito à inversão na dinâmica familiar (Divulgação)

Samiza pontua, ainda, que outro impacto generalizado para as crianças vítimas de trabalho infantil é a dificuldade na inserção em outros grupos sociais da mesma idade, porque os assuntos e responsabilidades são muito além da idade adequada. Segundo ela, não tem como qualificar se o trabalho é menos ou mais danoso em termos psicológicos, mas o nível de dano psicológico tem muito a ver com as normas sociais e culturais as quais a criança ou adolescente está inserido.

“Se a criança está trabalhando dentro do que é considerado ‘aceitável socialmente’, ou seja, atendendo balcão em lojas, em oficinas mecânicas ou inserida em ambientes que não a deixe vulnerável, como casos de trabalhos em semáforos e exploração sexual, a princípio não se tem um impacto tão grande. Quando a criança está inserida dentro de um contexto familiar, a tendência é que haja danos psicológicos menores. Mas isso não é uma regra”, sustenta a psicanalista.

Além disso, destaca Samiza, as crianças e os adolescentes perdem a possibilidade de acompanhar as etapas naturais de desenvolvimento biológico e, também, perdem etapas de seu crescimento social. “Quando se trabalha com crianças oriundas do trabalho infantil é muito comum sentir a necessidade de se recriar etapas que se perderam”, exemplifica.

De acordo com a especialista, tudo que acontece na vida de uma criança gera impacto permanente, pois, durante a infância, se tem grande volume de desenvolvimento fisiológico e cerebral. “De fato, o ser humano está sempre em desenvolvimento. Os impactos, no entanto, variam de acordo com a criança, do trabalho que exerceu, da aceitação sociocultural, entre outros pontos. Todas as questões abordadas têm características ofensoras. O nosso conteúdo genético é modificado pela vivência e ambiente. Então, o que passamos para nossos filhos não é o mesmo que nossos pais nos passaram, e assim sucessivamente”, realça Samiza.

O Estado

Em todos os 62 municípios do Amazonas, de acordo com a Adriana Pellin, chefe do Departamento de Proteção Social Especial (DPSE) da Secretaria de Estado de Assistência Social (Seas), o Estado acompanha, monitora e presta apoio técnico aos gestores das cidades para as execuções das ações estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Aepeti)

“O Tema Nacional da Campanha deste ano é: ‘Precisamos agir agora para acabar com o Trabalho Infantil’. Por meio das mobilizações e sensibilizações que estão acontecendo nos municípios, esperamos que ocorra um aumento nas denúncias acerca dessa prática, que toda sociedade se conscientize sobre as consequências do trabalho infantil na vida da criança e do adolescente, o quanto acarreta consequências emocionais, psíquicas, social e educacional”, comentou Adriana.

A chefe do DPSE lembra que o ano 2021 foi escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o ano internacional para eliminação do trabalho infantil, contudo, diante da pandemia da Covid-19, verificou-se um aumento no índice do trabalho infantil e de suas piores formas.

“É uma luta diária de conscientização e mobilização. Para termos resultados positivos e erradicar o trabalho infantil precisamos que todos participem e lutem por esta causa. Há penalidades para quem prática o trabalho infantil, seja em explorar por intermédio da mão de obra, exploração sexual, escravidão, tráfico de crianças entre outros. A denúncia se faz por meio do Disk 100, podem procurar o conselho tutelar mais próximo da zona ou até mesmo as delegacias”, finalizou.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.