Chefe da PF no AM rebate ministro após críticas a operações contra o desmatamento na Amazônia
05 de abril de 2021

Com informações da Folha de S. Paulo
BRASÍLIA – A maior apreensão de madeira da história do Brasil virou motivo de atrito entre a Polícia Federal e Ricardo Salles (Meio Ambiente). O ministro foi no último dia 31 de março ao Pará, onde fez uma espécie de verificação da operação. Salles aponta falhas na ação e tem dito que há elementos para achar que as empresas investigadas estão com a razão.
Em entrevista à Folha, o chefe da PF do Amazonas, Alexandre Saraiva, 50, diz que é a primeira vez que vê um ministro do Meio Ambiente se manifestar de maneira contrária a uma ação que visa proteger a floresta amazônia. “É o mesmo que um ministro do Trabalho se manifestar contrariamente a uma operação contra o trabalho escravo”, afirma. A apuração do caso está sob seu comando.
Saraiva declara que tudo que foi apreendido desde dezembro do ano passado, mais de 200 mil metros cúbicos de madeira, é produto de ação criminosa. Ele afirma também que as empresas até agora não apresentaram documentos requisitados pela PF. “É como se um carro fosse parado na estrada, a polícia pedisse o documento, e o condutor não tivesse em mãos ou entregasse um sobre um Fusca, quando estava dirigindo um Chevette”, afirma o delegado, que concluiu seu doutorado sobre o tema em fevereiro.
“Se a documentação estiver dentro da lei, liberaremos a madeira na hora. A possibilidade disso acontecer, na minha opinião, é perto de zero”, ressaltou ainda o Alexandre Saraiva.
Há mais de dez anos ocupando cargos de superintendente na PF (Roraima, Maranhão e Amazonas, agora), ele diz que as investigadas na ação não podem nem ser chamadas de empresas. “Trata-se de uma organização criminosa.”
“Na Polícia Federal não vai passar boiada boiada”, diz, usando termo utilizado por Salles em reunião ministerial do ano passado.

O ministro Ricardo Salles disse achar que há erros na investigação da PF. Como o sr. viu essa declaração?
AS – Me parece que é o mesmo que um ministro do Trabalho se manifestar contrariamente a uma operação contra o trabalho escravo. Nunca tive notícia de um ministro do Meio Ambiente se manifestando contrariamente a uma operação que visa proteger a floresta amazônica. É um fato inédito e que me surpreendeu.
Os empresários e o ministro afirmam, entre outras coisas, que as madeiras saíram exatamente do local que seus documentos afirmam ter havido a extração. Foi esse o motivo da apreensão?
AS – Não, a questão é se essa exploração poderia ter ocorrido. Onde está o processo administrativo que autorizou essa exploração? É claro que o criminoso sabe onde ele cometeu o crime. Isso é incontroverso. Existe um plano de manejo legal?
O ministro diz ter verificado a origem de duas toras. O fato constatado pelo ministro não faz diferença para a investigação?
AS – É irrelevante. Para nós, aquela madeira é produto de crime. Estamos falando de aproximadamente 40 mil toras. Se ele olhou duas, chegou a uma conclusão dessas, é no mínimo precipitado.
Qual é o motivo para essas madeiras estarem apreendidas?
AS – Irregularidade no plano de manejo, no Cadastro Ambiental Rural da área (CAR). São irregularidades gravíssimas. Por exemplo, as áreas de preservação permanente (APP), ao que parece, foram ignoradas.
A PF já fez laudos dessas apreensões?
AS – Temos 10 ou 12 laudos atestando de forma inequívoca a ilegalidade de exploração. As empresas têm mais de duas dezenas de autuações no Ibama. É uma organização criminosa. Não merecem nem a denominação de empresas. Têm a vida dedicada ao crime, ao furto de bens públicos, à fraude, à corrupção de servidores públicos.
Quando o sr. diz que eles ainda não mostraram que a madeira é legal, não seria a PF que deveria mostrar que aquilo é ilegal?
AS – Digamos que alguém é parado em uma blitze. O policial pede o documento do veículo e a pessoa diz que não tem. A polícia não precisa mostrar que o veículo está ilegal. A obrigação é ter o documento. A gente tem pedido o processo administrativo, que é o que gera o DOF (Documento de Origem Florestal) ou a guia florestal, que permite a exploração de madeira.
Eles argumentam que entregaram os documentos.
AS – Entregaram documento dizendo que era um Fusca e estávamos diante de um Chevette. O que estava na guia florestal sobre madeira na balsa não era compatível com a carga. Eles deveriam ter entregue o plano de manejo e não fizeram isso.
Mas a PF está pedindo o DOF ou o processo administrativo?
AS – Voltando para a comparação com o carro. Imagina uma empresa que vende carros roubados. Ela vai precisar de um esquema no órgão estadual para poder ter um licenciamento (CRV) falso, que vai esquentar o veículo. Substitui automóvel por madeira e CRV por DOF.
Nós queremos ver o processo que gerou o DOF. Por exemplo, aquela área é de propriedade daquelas pessoas? Outra questão, o Cadastro Ambiental Rural [CAR] está de acordo com as normas ambientais da época? As áreas de preservação permanente não foram respeitadas.
O sr. viu problema na ida do ministro ao local da apreensão?
AS – Poderia até ter ido. Mas por que o ministério não mandou uma equipe do Ibama para um trabalho técnico e, inclusive, se fosse o caso, autuar as madeireiras? Isso sim seria uma atuação institucional e muito bem-vinda. [O Ibama estava presente na visita, mas ainda não fez um relatório final sobre o caso.]
Eles atuam no aspecto administrativo e a PF como órgão de persecução penal. Mas uma coisa não tem relação com a outra, lição básica que aluno de segundo ano do direito sabe.
O ministro cita na entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo que a PF está criando uma situação de instabilidade jurídica e que as madeireiras vão quebrar. Qual sua opinião?
AS – Ou a gente faz um país baseado na lei ou faz baseado no crime. Se não está dentro da lei, não tem que funcionar mesmo. Se a lei está incomodando, muda-se a lei. Mas a lei que está valendo hoje é essa, e nós estamos cumprindo.
A investigação não pode estar errada?
AS – Há uma presunção de que existe ali o cometimento de um crime. E estamos falando de recursos de meio ambiente, em que vale outro princípio basilar do direito ambiental, o princípio da cautela. Existe uma obrigação dos órgãos ambientais e da polícia de, na dúvida, realizar apreensão e fazer investigação.
As madeiras serão liberadas na quarta-feira (7), na próxima visita do ministro ao Pará?
AS – Se os processos forem apresentados e a documentação estiver dentro da lei, claro que vamos liberar. Na hora. Nem poderia ser diferente. Se está certo, está certo. Na minha opinião, a possibilidade disso é perto de zero.
Qual o impacto da atuação dessas empresas no mercado?
AS – Estou há dez anos na Amazônia. Na minha opinião, a exploração, nesses moldes, inviabiliza a exploração legal da madeira, sufocada por uma organização criminosa. É por isso que a madeira brasileira de alta qualidade está sendo vendida nos EUA a um preço de compensado, de pinus, e, na Europa, a preço de eucalipto. O ministro disse que eu recuei sobre a questão da responsabilidade dos países europeus [no desmatamento]. Jamais. Nunca recuei. Não significa dizer com isso que o Brasil não tem responsabilidade sobre a preservação da Amazônia. De forma alguma. Mas é claro que o consumo incentiva o crime.
Os críticos da operação afirmam que até o Exército percebeu que a investigação é furada e por isso se retirou.
AS – O Exército nos deu um apoio fundamental. Saiu na hora que entendeu que tinha cumprido sua função institucional. Isso não muda nada [na investigação].
O governo Bolsonaro é duramente criticado pela atuação no meio ambiente. Qual sua opinião?
AS – Vejo esse governo comprometido com a proteção do meio ambiente. Acho que vamos terminar o ano com índice bem baixo de desmatamento. Há uma estratégia correta, atacando o problema onde ele tem que ser atacado, que é dentro do processo administrativo.
Uma das críticas tem a ver com uma declaração do ministro no ano passado, quando ele disse que era preciso aproveitar as atenções voltadas ao Covid-19 para passar a boiada, falando sobre flexibilização de normas. Como o sr. viu essa fala?
AS – Não vou e não posso fazer qualquer comentário sobre manifestação do ministro do Meio Ambiente em situação que não envolva a superintendência da PF no Amazonas. Mas aqui na Polícia Federal não vai passar boiada.
O sr. formula sua atuação buscando ser ministro do Meio Ambiente?
AS – Fui para a Amazônia em 2011, em Roraima, porque acreditava que era possível fazer alguma coisa para deter o desmatamento. Trabalho desde então nisso, com ênfase. Não existe relação entre ser ou não ministro. Minha carreira é na PF. Sou policial, mas também sou um servidor do país.
O seu nome foi relacionado algumas vezes por haver proximidade com o presidente. Qual a relação que o sr. tem com ele?
AS – Falei com ele duas vezes. Uma vez, ele já eleito, conversei com ele sobre questões ambientais, na casa dele. Outra vez na live [semanal]. Foram os únicos contatos que tive.
O ministro disse que precisa de US$ 1 bilhão para poder reduzir o desmatamento em 40%. Como o sr. vê?
AS – Eu diria que a instituição mais importante de combate ao desmatamento da Amazônia é a Polícia Federal. E nunca recebeu um centavo de Fundo Amazônia. Acho que não preciso dizer mais nada.