Cidade à deriva: vidas cercadas pelo lixo no coração de Manaus
Por: Letícia Misna
06 de junho de 2025
MANAUS (AM) – Chinelo, shampoo, lâmpada, enxaguante bucal, desinfetante e amaciante. O que parece uma lista de compras é, na verdade, um retrato cotidiano do que boia no Porto da Manaus Moderna, uma das principais portas fluviais da capital amazonense. No lugar, que deveria ser símbolo de vida, corre um fluxo contínuo de resíduos que denunciam, de forma nua e crua, o fracasso coletivo da política ambiental urbana.
No coração do Centro Histórico de Manaus, formou-se o que moradores e trabalhadores naturalizaram como um lixão flutuante. No mês em que se celebra o meio ambiente, o cenário escancara a distância entre as promessas de sustentabilidade e a negligência histórica com o cuidado das águas e das populações ribeirinhas.
Segundo dados da Associação Brasileira de Resíduos Sólidos e Meio Ambiente (Abrema), a cidade descarta diariamente cerca de 3 mil toneladas de lixo. Parte desse volume, que deveria ter como destino o aterro sanitário da AM-010, deságua diretamente no leito do Rio Negro, a principal via de circulação e abastecimento da região.

O agricultor Orlando Monteiro, de 70 anos, há 14 anos sobrevive nas margens sujas da Manaus Moderna. Ele já trabalhou como gari da prefeitura e, hoje, é um entre os muitos que aprenderam a conviver com o que chama de “aroma forte demais”. O cheiro da água, segundo ele, “vem da podridão”.
“Aqui é muito ruim. Tem dia que tá bacana. Tem dia que tá assim”, disse Orlando, ao apontar para os resíduos boiando no Rio Negro. “Quando chove o lixo vem de lá pra cá. Esse lixo aí não é daqui”, afirma.
Como em um ciclo de castigo, a população mais pobre, como ribeirinhos, ambulantes, lavadeiras e pescadores, precisa transitar sobre o esgoto, navegar sobre restos de consumo urbano e adoecer no cenário que não criou, mas do qual depende para viver.
De acordo com o agricultor e com outras pessoas que habitam a localidade, o lixo que paira à margem da Manaus Moderna deriva, em sua maioria, dos igarapés que cortam a capital amazonense e deságuam na área, além de ser jogados das balsas e embarcações ancoradas no Porto.
“Todo ano é essa lixeira. A Prefeitura [de Manaus] vem, limpa, aí suja de novo. Não passa nem 15 dias e já fica assim. Basta dar uma chuva. Olha aí, a imundice como tá aqui!”, ressaltou.

Orlando também mostra a presença de canaranas, ilhas de vegetação formadas por espécies de plantas aquáticas. Elas se desenvolvem no solo deixado pelos rios em períodos de estiagem e, quando as águas voltam a subir, a vegetação se desprende do chão e passa a “navegar” pelas vias fluviais.
Além de dificultar o trânsito de embarcações, essas ilhas vegetais são portos para os resíduos sólidos, que se prendem a elas. “Essa canarana ali é da natureza. Eles [órgãos da Prefeitura de Manaus] não arrancaram, não roçaram e tá assim, essa sujeira aí”, disse.
Antes da Manaus Moderna, Orlando Monteiro trabalhou como gari na Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (Semulsp) por seis anos, limpando, inclusive, os igarapés da cidade. Na visão dele, a principal responsável por essa poluição é a população.
Nós ‘limpava’ esses igarapés ‘num’ dia, no outro dia tava do mesmo jeito. Se conscientizarem o pessoal lá de dentro [de Manaus] ‘pra’ não jogar lixo no rio, fica bom. Mas, enquanto não, não fica limpo”, pontuou.
Na água, mas sem água
Para Maria Antônia da Silva, a situação é um problema político e de administração pública. “A Prefeitura [de Manaus] não faz nada pela gente. Porque quando quer voto eles vêm aqui, a gente vota, e depois não estão nem aí pra gente. Eles já limparam agora essa semana aí em cima [na rua], mas aqui embaixo eles não vêm”, relatou.

Aos 55 anos, que completou no último Dia Internacional da Mulher, e fez questão de ressaltar, Maria mora sozinha com o filho de 14 anos em uma casa flutuante, ali. Desempregada e natural de Carauari, interior do Amazonas, ela vive em Manaus com auxílio do Bolsa Família.
Para ela, o maior problema de viver em meio ao lixo é a falta de água limpa. Mesmo tendo o Rio Negro, que abastece a capital, como quintal, a dona de casa não consegue utilizá-lo devido à poluição. “A água aqui é difícil. A gente apara da chuva pra lavar louça, lavar roupa”, disse, relatando ainda que, para beber, pega água de biqueiras no Centro de Manaus.
Vulnerabilidade a doenças
À CENARIUM, Maria Antônia relatou que seu filho já foi parar no hospital após contrair doença de Chagas, que, segundo ela, contraiu em meio ao lixo. “Aqui também tem cobra, tem rato. Ontem mesmo matei um ali no meu trapiche”, acrescentou.
Orlando Monteiro também compartilhou que sempre vê pessoas que vivem ali, especialmente crianças, adoecerem com frequência. “O meu patrão até hoje ainda tá com uma gripe. Minha patroa, que tá pra terra, ela tá no médico. Acho que é tudo por causa desse lixo. Tem dias que essa água tá fedendo demais. Aquele aroma muito forte. Acho que ela inalou e tá doente”, disse Orlando.
Segundo a médica da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD) e mestre em Doenças Tropicais e Infecciosas, Arlene Pinto, a poluição é, de fato, a grande causadora das doenças de veiculação hídrica.
“Como o próprio nome já diz, são doenças em que a água é o principal veículo de transmissão. Essas patologias são consideradas um problema de saúde pública e estão associadas ao meio ambiente”, explicou a especialista.
De acordo com ela, fatores como a deficiência do sistema de abastecimento de água tratada, a insuficiência de saneamento básico, o destino inadequado dos dejetos, a higiene inadequada, a alta densidade populacional, as carências habitacionais, o rápido crescimento urbano e a formação de conglomerados sem a infraestrutura adequada favorecem a instalação e rápida disseminação dessas doenças.
Citadas pela médica, entre algumas enfermidades relacionadas à ingestão e uso doméstico da água, ou ao contato direto da pele com fontes contaminadas, estão:
- Amebíase
- Criptosporidíase
- Diarreia por Escherichia coli
- Disenteria bacteriana
- Febre tifoide
- Gastroenterite
- Hepatite A
- Leptospirose
“O cenário ideal da nossa ‘cidade flutuante’ abrange muito além das políticas de saúde pública, mas também envolve a organização social como a construção de casas populares”, acrescentou.

Duas cidades
Para o sociólogo Luiz Antonio Nascimento, professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o lixo na Manaus Moderna, assim como em outros pontos da capital, é uma das expressões daquilo que estudiosos têm afirmado há tempos: que Manaus é dividida em duas cidades.
“A cidade limpa, uma cidade que tem serviços públicos, etc., e a cidade abandonada, uma cidade negligenciada. E isso é intencional. É uma posição política das gestões de não dar atenção para essas pessoas, para esses lugares. Porque vão dizer assim ‘eles é que são culpados por serem moradores ou usuários desses lugares, eles é que são geradores desse lixo, eles é que são responsáveis pela degradação desse espaço e, portanto, eles é que devem assumir as consequências’”, enfatizou Luiz Antonio.
Em conversa com a CENARIUM, ele relembrou uma ocasião, quando chegou de viagem e desembarcou no Porto do São Raimundo. “Subi com um saco de lixo, do lixo que eu produzi durante a viagem. Bom, eu andei pelo menos uns 500 metros até chegar ao local que eu tinha que pegar o transporte e eu não encontrei nenhum cesto de lixo, nenhum container para depositar aquele lixo”.

Confirmando, ainda, a fala dos moradores, o sociólogo contou que, de fato, uma parte importante de lixo que chega à orla de Manaus nem ao menos é produzida ali.
“Esse lixo é produzido nos igarapés de Manaus. Tarumã, Tarumã-Mirim e outros tantos. Moradores das comunidades que vivem nesses igarapés não têm coleta adequada de lixo. Eles consomem os produtos industrializados comprados em Manaus e lá nas suas comunidades não têm onde depositar e não têm uma coleta sistemática, regular e contínua. E o lixo vai bater no rio. Não estou falando a partir de uma impressão, existem estudos sobre”, explicou.
Luiz Antonio lembra também que as pessoas que vivem em meio ao lixo não se submeteram àquilo. “É a possibilidade que elas têm, de estarem ali. É ali que elas conseguem ter sociabilidade, é ali que estão os amigos, é ali que está a forma de vida delas, é ali que elas ganham dinheiro, prestando serviço. Elas não estão ali porque gostam de estar, no lugar sujo e poluído. O que a gente precisa fazer efetivamente, primeiro, é não aceitar isso como normal”, declara.
Violações de direitos ambientais e fundamentais
O advogado socioambientalista João Vitor Lisboa explicou que a poluição causada pelo lixo na Manaus Moderna é um problema sério de vários pontos de vista, uma vez que viola a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) e da Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998).
“Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 225, garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe ao poder público e à coletividade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, disse.
Ele explica que a responsabilidade primária pela gestão e destinação adequada dos resíduos sólidos urbanos é da Prefeitura de Manaus, conforme o artigo 30, inciso V, da Constituição.
“O município deve garantir a coleta e o tratamento adequado do lixo, bem como a implementação de políticas públicas que evitem a degradação ambiental. No entanto, essa responsabilidade pode ser compartilhada com o governo estadual e federal, especialmente quando envolve a contaminação de corpos hídricos, além da possibilidade de responsabilização de empresas e comércios que contribuam para o descarte irregular”, afirmou.
O advogado destacou, ainda, que as pessoas afetadas diretamente por esse lixo podem recorrer a diversas instâncias no meio jurídico para exigir providências do poder público, como, por exemplo:
- Ações coletivas ou individuais para responsabilizar o município pela omissão na gestão de resíduos sólidos;
- Ação civil pública, que pode ser proposta pelo Ministério Público ou Defensoria Pública para garantir medidas urgentes de limpeza e saneamento;
- Denúncias aos órgãos ambientais, como o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para que fiscalizem e apliquem sanções aos responsáveis.

“O Judiciário tem reconhecido, em diversas decisões, que o poder público pode ser responsabilizado pela omissão no gerenciamento adequado dos resíduos sólidos e pela degradação ambiental. Tribunais já determinaram que prefeituras devem adotar medidas emergenciais para solucionar problemas de poluição em corpos hídricos e comunidades afetadas, sob pena de multas e outras sanções”, lembrou.
Sem resposta
A última limpeza realizada e divulgada pela Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (Semulsp) nas águas da Manaus Moderna data de novembro do ano passado, segundo informações disponibilizadas no site da própria secretaria.
A CENARIUM entrou em contato com a secretaria para questionar pontos mais específicos, como dados sobre total de lixo retirado da orla do Porto 2024, se confirmam que o lixo tem origem, de fato, dos igarapés da cidade e quais ações a prefeitura tem tomado, ou pretende tomar, não apenas sobre os resíduos, mas sobre as pessoas que trabalham e moram ali. Até a publicação desta reportagem, porém, o órgão não havia se manifestado.
