‘Cidade das Luzes’: invasão e degradação da floresta refletem falta de plano de habitação em Manaus

Rua do Parque das Tribos, na zona Oeste de Manaus. (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

Karol Rocha – Da Revista Cenarium

MANAUS – Em dezembro deste ano, a primeira ação de reintegração de posse ocorrida na área conhecida como “Cidade das Luzes”, na zona Oeste de Manaus, completa seis anos e a realidade daquela ocupação irregular, atualmente, continua a mesma: um reflexo da falta de plano de habitação na capital que invade a floresta e degrada o meio ambiente. A invasão, chamada de bairro por seus ocupantes, está localizada na fronteira com a comunidade indígena Parque das Tribos, no bairro Tarumã. Lá, centenas de moradores sentem na pele as dificuldades de viver sem acesso à água potável, energia elétrica e mobilidade urbana já que o transporte coletivo não acessa as ruas.    

“Temos três tipos de dificuldades aqui: a energia elétrica que a gente não tem, a segunda é a água, a gente usa de poço, e a terceira é a condução que nós não temos. A parada de ônibus fica a 1,5 quilômetro de distância, precisamos sair do bairro”, contou a doméstica Ednelza Pereira Campos, de 53 anos.

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Ednelza Pereira Campos falou à CENARIUM sobre como é viver numa comunidade sob a ameaça de ser retirada a qualquer momento. (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

A doméstica conta que mora na ocupação irregular há, pelo menos, quatro anos, em um terreno doado antes da ação de reintegração de posse ocorrida no dia 11 de dezembro de 2015. À época, a operação foi coordenada pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM). Mesmo sem ter vivido aquele momento, ela conta ter medo de uma nova ação. “Aqui eu construí uma casa de alvenaria. Vim de Itacoatiara para um tratamento médico da minha filha. Hoje, ela está na fila de espera para fazer uma cirurgia no joelho. Morro de medo que tomem a nossa casa”, completou Ednelza.

É trabalhando como vendedor de peixes que Igor Pimentel Almeida, de 43 anos, ganha a vida. Ele optou por morar e trabalhar na “Cidade das Luzes” pela carência de venda de alimento na comunidade. “Antes eu trabalhava lá no Manoa e como aqui era carente de peixe, comecei a vender. Eu vendo todo tipo de peixe, de pirarucu ao jaraqui, frutas, verduras, farinha, poupa de suco. Todo mundo que mora aqui dentro é pai de família e trabalhador”, afirmou.

Igor vende peixes diariamente em barraca na “Cidade das Luzes”. (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

Sonhos

Pode parecer um sonho pequeno caso você more em um bairro nobre da maior capital da Amazônia, mas o sonho da doméstica Luzia Lima Câmara, de 38 anos, é ter uma geladeira. Na casa simples de alvenaria, ela conta apenas com uma cama e um fogão. “Geladeira, a gente não tem. Eu compro comida para comer no dia mesmo ou, então, eu guardo comida na casa do vizinho. O que eu mais quero na minha vida é uma geladeira, porque é muito humilhante pedir a ajuda das pessoas e tem muita gente aqui que não gosta de ajudar”, disse.

Luzia mora com o marido e os dois filhos pequenos. A expectativa dela para o futuro é educar as crianças e retornar ao mercado de trabalho como serviços gerais. “Eu já trabalhei em casa de família, já trabalhei em empresa com serviços geral. Para o futuro, eu quero continuar morando aqui, colocar meu filho na creche, ajudar meu marido e comprar as coisas para dentro de casa né. É muito ruim você querer comprar as coisas e não poder”, explica.

Luzia seguro o filho e não consegue conter as lágrimas ao falar de necessidades básicas. (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

Perdas ficam na memória

O pedreiro Jeisiam Souza Ferreira, de 33 anos, foi um dos moradores retirados do local junto com a família, em 2015, quando bombas de gás eram lançadas contra as famílias, enquanto homens e máquinas destruíam os barracos irregulares. Um ano depois, em 2016, ele fez questão de retornar para a moradia, onde está até hoje. Ele lembra que perdeu o pouco que tinha. “Do passado, a gente lembra só da perda. Tudo o que a gente tinha foi por água abaixo, mas graças a Deus, ele tem nos restituído e estamos na luta pela moradia e pelo nosso bem-estar”, disse.

Meio ambiente devastado

De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Sema), Manaus tem mais de 55 áreas invadidas. E uma das áreas mais importantes e protegidas a qual está sob ameaça das invasões é a Reserva Florestal Adolpho Ducke, localizada no bairro Cidade de Deus, zona Norte da capital.

Cidade das Luzes: despejo violento em Manaus/AM / Sessão sobre o Brasil /  Casos de despejos / Tribunal Internacional dos Despejos - International  Tribunal on Evictions
“Cidade das Luzes” vista de cima mostra destruição ambiental. (Divulgação/ SSP-AM)

Segundo o ambientalista Carlos Durigan, o desmatamento e degradação destas áreas ameaçam o patrimônio natural e espécies como o sauim-de-coleira que atualmente é um dos primatas mais ameaçados do Brasil. “O desmatamento ainda promove aumento das emissões de carbono, contribuindo para o aquecimento global e a redução da cobertura florestal no espaço urbano. Compromete nossa qualidade de vida e abre espaço para a propagação de problemas sanitários diversos”, disse. E continuou: “Estamos no coração da Amazônia e mesmo nossos fragmentos florestais ainda são importantes para a biodiversidade e para o provimento de serviços ecossistêmicos que nos proporcionam qualidade de vida”.  

Falta de política pública

Conforme um estudo do MapBiomas, 45% da área urbanizada no Amazonas é composta por favelas. O trabalho foi divulgado no dia 4 de novembro deste ano e o levantamento é baseado em imagens de satélite, reunidas entre os anos de 1985 e 2020. O doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Federal do Amazonas, Marcelo Seráfico, explica que a origem da formação de invasões está em duas situações:

“Um é relativo à política pública de habitação, que é inexistente ou insuficiente; e outro, do limite imposto a um imenso contingente de pessoas de acesso à participação na riqueza produzida no País, que se expressa na baixa renda e na situação de pobreza e vulnerabilidade social”. Ele ressalta que são pessoas em situação de pobreza que geralmente procuram as áreas irregulares para construir uma moradia e as exceções “precisam ser identificadas e explicadas”, diz ele.

Leia mais: Irmãos de assessora do prefeito de Manaus receberam apartamentos populares

Entre os problemas mais comuns desse tipo de habitação está a falta de serviços básicos. “Além dos problemas comuns à maior parte da cidade, nessas áreas a carência de serviços públicos e a privatização do espaço público se mostram ainda mais graves, expressando-se em condições sanitárias, moradias e arruamento inadequados; além de carência de espaços de lazer, escolas e postos de saúde; exposição das pessoas a situações de violência, dentre outros problemas”, pontuou.

Aproximadamente 1,8 mil famílias moram na invasão
Registro de 2015, do fotojornalista Ricardo Oliveira durante reintegração na “Cidade das Luzes”. (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

Como solução, Marcelo Seráfico acredita no combate à desigualdade social. “Nesse caso, se apresenta em dois tipos de distribuição da riqueza: de um lado, a distribuição que resulta no maior investimento em serviços públicos relativos à urbanização (saneamento, habitação, saúde, educação, transporte e segurança); de outro, a distribuição que resulta do acesso estável à renda, que possibilite às pessoas manterem e planejarem suas vidas”, finalizou.

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