Cimi aponta aumento de violência contra patrimônio indígena e casos de suicídios


Por: Ana Cláudia Leocádio

28 de julho de 2025
Cimi aponta aumento de violência contra patrimônio indígena e casos de suicídios
O Brasil registrou, em 2024, aumento de quase 350% da violência contra o patrimônio territorial indígena e de 15,5% nos casos de suicídios (Marcelo Camargo/ Agência Brasil)

BRASÍLIA (DF) – O Brasil registrou, em 2024, aumento de quase 350% da violência contra o patrimônio territorial indígena e de 15,5% nos casos de suicídios, principalmente entre jovens de até 19 anos. É o que revela o relatório “Violência contra os povos indígenas do Brasil”, divulgado nesta segunda-feira, 28, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Brasília. O documento é o primeiro elaborado após a vigência da Lei 14,701/2023, a chamada “Lei do Marco Temporal”, que impôs uma data limite para reivindicar a demarcação das terras indígenas e instituiu mecanismos que dificultam ainda mais os processos administrativos do reconhecimento da terra.

Conforme os dados divulgados, em 2023 foram registrados 276 casos de violência contra o patrimônio indígena, número que saltou para 1.241 em 2024. Deste total, 857 casos envolvem omissão e morosidade na regularização de terras indígenas – TIs (todas as TIs com alguma pendência ou sem providências para sua regularização); 154 registros foram de conflitos relativos a direitos territoriais, ocorridos em 114 TIs, em 19 Estados; e 230 casos foram de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais, como madeira e garimpo, e danos diversos ao patrimônio, que atingiram 159 territórios, em 21 Estados do Brasil.

Ato Munduruku, Guarani e Kaiowá em frente ao STF, em Brasília (Tiago Miotto/Cimi)

Para o Cimi, não há dúvidas de que essa explosão de violência contra as terras indígenas ocorreu por causa da vigência da “Lei do Marco Temporal”, cujas mudanças nos procedimentos administrativos de reconhecimento territorial trazem pontos complicados e uns até inexequíveis. Isso aumenta a morosidade nos processos de demarcação das terras indígenas e compromete o avanço do governo nas homologações. Para se ter uma ideia, em 2025 não houve uma terra homologada pelo Governo Lula.

Os impactos listados incluem as 857 terras indígenas com pendências administrativas para serem regularizadas, dentre as quais estão 555 que não contam com nenhuma providência para o início de sua demarcação. (…) Um reflexo disso é o fato de que aproximadamente dois terços (78) das terras e territórios indígenas que registraram conflitos relativos a direitos territoriais em 2024 não estão regularizados. Essas áreas concentraram 101 dos 154 casos registrados pelo Cimi nesta categoria em 2024”, informa o relatório.

No caso das invasões, danos ao patrimônio e exploração ilegal de recursos naturais, a maioria dos casos (61%) atingiu TIs regularizadas (85), reservadas (10) ou dominiais (2). Pelo menos 48 TIs registraram casos ligados a incêndios ou queimadas em 2024, e muitas delas tiveram enormes extensões consumidas pelo fogo. Os Estados do Amazonas (257), Mato Grosso do Sul (179) e Rio Grande do Sul (125) lideram as violências ligadas às terras indígenas. O coordenador o relatório, Roberto Liebgot, disse que o cenário de queimadas descontroladas tende a se repetir este ano nas terras indígenas.

Relatório trouxe dados relacionados a 2024 (Tiago Miotto/Cimi)

Um dos exemplos publicados no relatório relativos a conflitos por direitos territoriais é o projeto de exploração de silvinita para a produção de potássio em território Mura, em Autazes, no Amazonas, pela mineradora canadense Potássio do Brasil. Como o Povo Mura ainda aguarda a homologação da sua terra, a empresa conseguiu na Justiça, com apoio de algumas lideranças indígenas locais, a autorização para continuar com a mineração.

O presidente do Cimi, Dom Leonardo Steiner, afirmou que o relatório é uma oportunidade de dar visibilidade ao “extermínio” dos povos indígenas, não propriamente do desaparecimento das pessoas, mas da sua cultura, suas línguas como primeiros habitantes do País.

Steiner avalia que essa violência é uma agressão desde 1500, quando o europeu chegou ao território e começou a tomar posse das terras que sempre foram dos indígenas. “A luta continua hoje com nossos povos indígenas. Seja aonde for, eles estão recordando quem são”, disse.

Dom Leonardo Ulrich Steiner é arcebispo de Manaus. (Divulgação/Arquidiocese de Manaus)

O secretário-geral da CNBB, Dom Ricardo Hoepers, criticou a vigência da “Lei do Marco Temporal” e disse que nenhuma legislação, por mais recente que seja, pode prejudicar direitos já consagrados, porque a validade dessa lei só fez agravar a violência estrutural contra os povos indígenas. “Que esse relatório não seja apenas lido, mas sirva para transformar realidades, pressionar os poderes públicos a assumirem sua responsabilidade histórica”, afirmou.

O relatório é publicado pelo Cimi desde 1986, mas foi a partir de 2003 que o documento passou a ser anual com tradução para o inglês.

Suicídios

Outro dado alarmante trazido pelo relatório de 2024 é o número de suicídios, que cresceu 15,5% de um ano para outro, saltando de 180, em 2023, para 208 ano passado.

Os dados integram o capítulo dedicado aos casos de “Violência contra a Pessoa”, que totalizaram 424 registros em 2024, divididos em nove categorias: abuso de poder (19); ameaça de morte (20); ameaças várias (35); assassinatos (211); homicídio culposo (20); lesões corporais (29); racismo e discriminação étnico-cultural (39); tentativa de assassinato (31); e violência sexual (20).

Casos de suicídio indígena aumentaram no último ano (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Os Estados com maior incidência de casos de suicídio foram Amazonas (75), Mato Grosso do Sul (42) e Roraima (26), seguindo a tendência registrada nos anos anteriores. “Estes mesmos Estados, que há anos lideram os números de suicídios indígenas, também são palco de elevados índices de violência e de vulnerabilidade social. Há ausência ou insuficiência de políticas públicas que abordem o tema”, afirmou o relatório.

O documento acrescenta, ainda, que “a maioria (73%) dos suicídios são cometidos por homens indígenas, com alta incidência de casos entre indígenas de até 19 anos (32,2%), muito próxima da faixa que acumula mais casos, entre 20 e 29 anos (37,5%). Em 2024, 67 indígenas com até 19 anos de idade cometeram suicídio”.

Assassinatos

Houve também um leve aumento no número de assassinatos de 2023 para 2024, saindo 208 para 211, alta de 1,4%. Desse total, 159 vítimas eram homens e 52 mulheres. Assim como em 2023, Roraima (57), Amazonas (45) e Mato Grosso do Sul (33) concentram o maior número dos registros.

Um terço das mortes está concentrado na faixa de 20 a 29 anos, com 71 casos (33,6%), seguida dos indígenas até 19 anos, com 50 casos (23,7%). Na faixa de 30 a 39 anos foram registrados 41 casos (19,4%), de 40 a 59 anos, 40 assassinatos (19%). Entre os indígenas com 60 anos ou mais, foram nove mortes (9 4,3%).

Assassinatos de indígenas também cresceram no último ano (Reprodução/CVV)

Segundo o Cimi, as informações foram obtidas junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a secretarias estaduais de saúde e ao Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), por meio de pedidos realizados via Lei de Acesso à Informação (LAI) e de consultas a bases de dados públicas disponibilizadas pelos órgãos.

Vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica, o Cimi esclarece que os dados baseados apenas nas informações obtidas por suas equipes nas diferentes regiões do País e em notícias publicadas, somam 52 casos que resultaram em 55 assassinatos.

Episódios relatados

Entre os episódios registrados no Amazonas, o relatório destaca o assassinato por espancamento do indígena Tadeu Kulina, da aldeia Foz do Akurawá, da Terra Indígena (TI) do Médio Rio Juruá, em fevereiro de 2024. Tadeu foi encaminhado para Manaus pelo Dsei Médio Solimões e Afluentes para acompanhar a esposa Corima Kulina que estava com gravidez de risco. Ele foi espancado até a morte e teve o rosto desfigurado. O caso foi para o Ministério Público Federal (MPF), segundo o Cimi.

Tadeo Kulina, que morreu horas após ficar preso em uma viatura da PM do Amazonas (Divulgação/PM-AM)

O relatório ressalta, ainda, que o ano de 2023 foi encerrado com os ataques contra o povo Avá-Guarani, no oeste do Paraná, durante o Natal, além da promulgação da “Lei do Marco Temporal”, que fragilizou os direitos constitucionais indígenas, o que já era o prenúncio dos problemas que os povos originários enfrentariam no ano seguinte.

O primeiro mês de 2024 foi marcado pelo assassinato brutal da liderança Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, morta com um disparo de arma de fogo, num ataque que deixou diversos indígenas feridos e outros três baleados, no dia 21 de janeiro. O crime ocorreu após um grande grupo de fazendeiros armados atacar uma retomada dos povos Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó e Potiraguá, no sul da Bahia, com tiros e agressões.

Omissão do poder público

Foram registrados 311 casos de violência por omissão do poder público, que 47 por desassistências gerais, 87 na área de educação, 83 na área de saúde, dez por disseminação de bebida alcoólica, e 84 mortes por desassistência à saúde. Amazonas (41), Acre (39) e Pará (36) tiveram o maiores números de casos registrados.

Apesar de ter caído de 2023 para 2024, o registro de mortes de crianças indígenas de até 4 anos ainda alcançou 922 casos que, segundo o coordenador do relatório, morreram de doenças evitáveis ou tratáveis, o que demonstra o total abandono da saúde indígena pelo governo, que falhou na política pública de assistência. De novo, Amazonas (274) lidera o número de casos, seguido de Roraima (139) e Mato Grosso (127).

Povos isolados

O relatório cataloga 119 povos indígenas em isolamento voluntário, registrados pela Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres do Cimi. São 22 TIs com presença de isolados com registros de invasões, extração de recursos naturais e danos ao patrimônio, e 37 casos de isolados que se encontram em áreas sem providência para a restrição de acesso, demarcação e proteção da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Leia mais: Amazonas, Roraima e MS lideram assassinatos de indígenas, aponta Cimi
Editado por Jadson Lima

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