Saúde alimentar pode ser matriz econômica sustentável no Estado

Unir consumidores e produtores numa relação direta é a proposta principal. Fotos: CSA Manaus

Nícolas Marreco – Da Cenarium

Preparar a comida com vinagreira, beldroega ou caruru parece ser impensável pela maioria não saber quais plantas são essas. Todavia, é justamente esta a proposta das Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA). Nascida do intuito de ressignificar o cardápio nutricional, o projeto, atualmente vigente em Manaus, tem peso para consolidar a primeira matriz econômica sustentável do estado; e descentralizar o desenvolvimento para todos os interiores do Amazonas.

O coordenador do movimento em Manaus, Ariel Molina, explica a ideia, baseada na fruticultura do bioma amazônico. “É um grupo organizado de consumidores que se associa diretamente aos produtores rurais para financiar os custos de produção. Em troca, eles recebem alimentos orgânicos e agroecológicos toda semana”, descreveu.

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Para harmonizar com os ciclos de produção de cada insumo, o planejamento orçamentário para o investimento é de geralmente um ano, conforme Molina. Durante o processo, a reeducação alimentar é apenas um dos efeitos. O coordenador pondera que a questão é mais profunda. “Tratamos o alimento como algo sagrado, em que não deve ser exposto para a venda, mas nós sermos trazidos a participar da produção como protagonistas”, completou Molina, que também é doutorando em Botânica pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Retomar o contato do consumidor com os produtos diretos da terra, sem aditivos químicos nocivos, é a chave para a segurança alimentar do programa.

Em tempos de isolamento na pandemia do novo coronavírus, o cuidado a mais com a saúde tem aumentado. E a procura por comer bem. Circunstâncias assim podem ser oportunidades para a filosofia do CSA que, definida pela Declaração Europeia do projeto, é “uma parceria direta baseada na relação humana entre pessoas e um ou vários produtores, em que os riscos, responsabilidades e recompensas da agricultura são compartilhados, através de um acordo vinculativo de longo prazo”.

Qualidade de vida

Participante desde os primeiros meses do projeto em Manaus, a nutricionista, Karine Silveira, de 38 anos, contou que, em casa, contrastou diferenças entre o bem-estar dos filhos desde a gestação da mais nova, a Maria Rita, de 1 ano. “Comecei a participar na gravidez da Maria. E vejo diferença na disposição do mais velho, Caio. No funcionamento intestinal, nos exames de sangue. Eu já tinha a alimentação muito certinha, o que eu fiz foi diversificar mais”, relatou.

Ela divide com uma amiga a cota dois, que tem taxa de R$ 150 por mês em troca de 14 itens por semana, em média. Karine, que também é agente da vigilância sanitária, relatou a experiência ao conhecer as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) do bioma amazônico. Somado a isso, a segurança alimentar do projeto, ela diz, é baseada na própria confiança com os agricultores.

“Quando você vai ao supermercado, compra geralmente o que gosta. No CSA, como cada região do Brasil tem um tipo de alimento diferente, eu consumo aquilo que vem daqui. Eu não morro de amores por rúcula, mas eu como porque confio que é feito sem agrotóxicos. Tem as visitas ao sítio do agricultor, e vi que a vida dele também mudou desde que entrou no projeto”, continuou.

A proximidade com as famílias agricultoras é um gancho para a adesão de novos clientes. Para Karine, a relação “é de família mesmo”.

Um dos efeitos sociais mais fortes do CSA ocorre na própria família dos produtores. Karine relatou uma história que Joed de Melo, um dos produtores iniciais, compartilhou em uma das visitas à plantação. “Ele disse que lembrava do pai, produtor, que usava agrotóxicos na horta, e que não contava mais quantos amigos perdeu para o câncer. Quando chegava em casa, Joed só sentia o cheiro dos agrotóxicos usados na horta e torcia para aquilo parar”, relatou.  

Coagricultores

Um dos maiores problemas no consumo atual de frutas, legumes e vegetais é a supervalorização do preço de mercado, conforme o coordenador do CSA Manaus. Nessa cadeia, os atravessadores retiram lucro em cima do que é imposto pelas feiras e supermercados, contribuindo para o subdesenvolvimento dos agricultores. Além disso, “aquele alimento exposto em prateleira, se não for consumido, é descartado”, completou Molina.

É nesse sentido que o CSA chama o consumidor para uma consciência coletiva, para tornar-se coagricultor na horta. Atualmente, 70 famílias aderiram ao programa, batendo a meta para este ano com o aumento da procura na pandemia. De produtores, o CSA conta com três casais em Iranduba (a 28 km de Manaus) e quatro casais no ramal do Brasileirinho, zona leste da capital. Nesta época do ano, itens como alface, cebolinha, coentro, berinjela, quiabo, coco, couve estão na cesta semanal.

Uma das principais dificuldade, Molina fala, é a conscientização e sensibilização das pessoas. Falar de educação ambiental, a importância do apoio aos agricultores, os processos ecológicos da agricultura orgânica, por exemplo, é o mote do projeto. “A gente entende que se a alface foi colhida hoje é porque teve que ser plantada há três meses. E para eu ter alface daqui a três meses, tenho que plantar hoje”, explicitou.

Uma das propriedades vinculadas ao CSA Manaus para a produção agroecológica de alimentos.

Nesse sentido, o produtor Joed de Melo, um dos que encabeçaram a implantação do projeto, falou sobre um empoderamento que as famílias agricultoras receberam em meio à escassez na assistência. “Mudou a nossa maneira de enxergar a própria agricultura. Nos trouxe estabilidade financeira; hoje, todos da família têm um ganho igualmente a um salário. A situação da agricultura familiar na região Norte é muito precária, e hoje eu me sinto realizado e muito feliz em fazer parte”, enfatizou.

Mais informações

Quem desejar saber mais sobre o projeto, as cotas de cestas de alimentos, conhecer as produções dos agricultores parceiros pode entrar em contato pelo site csabrasil.org ou no número (92) 99486-4497. O local de retirada de alimentos é no Associação de Servidores do Inpa (Assimpa), na rua da Lua, s/n, conjunto Morada do Sol, Aleixo.

Política pública

Ante ao potencial de política pública na produção e abastecimento de alimentos da sociobiodiversidade local, o superintendente regional da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Serafim Taveira, sinalizou que existe um programa parecido, embora tímido no estado. O Programa de Aquisição de Alimentos em Compras com Doação recebe doações de produtores para reduzir a insegurança alimentar de escolas e unidades de assistência social.

Em contrapartida, o governo oferece garantia de renda mínima à família agricultora. Para este ano, ele falou, um montante de mais de R$ 10 milhões é estimado para o fim do terceiro trimestre deste ano no empenho no programa. “Antes da pandemia, fizemos rodadas de negócios com empresários e agricultores no intuito de uni-los”, indicou.

Os alimentos cultivados mudam a cada ciclo produtivo dos itens do próprio bioma local. As cotas mensais são retornadas em cestas semanais de alimentos

As dificuldades de mercados gourmet em achar bananas a preço acessível para além da Manaus Moderna, por exemplo, é uma das soluções que a instituição tem promovido. Um ponto de potencialidade para os agricultores crescerem são os selos artesanais e da agricultura familiar, instaurados pelo Ministério da Agricultura. A ideia do superintendente é, no caso do CSA, fazer o inverso, pondo selos em locais de convivência comum, como em condomínios, para identificá-los como consumidores comprometidos.

“Talvez a ideia fique mais fácil de vender para grupos de pessoas; de coletivo para coletivo. O delivery de frutas e legumes também tem aumentado e é uma oportunidade de nicho para a atuação do CSA”, concluiu. Os números da Conab no Amazonas, para alinhamento com a rede de agricultores, são os (92) 3182-2440/2406.

No governo do estado, o secretário de produção rural, Petrúcio Magalhães, detalhou que há “projetos prioritários de cadeias produtivas do açaí, guaraná, citros, banana, entre outros, que recebem fomento”. A ajuda provém de programas subvencionados de mecanização agrícola e calcário, doação de equipamentos e insumos às associações.

“O governo ajuda as organizações sociais a comercializarem os produtos por meio das feiras e na merenda escolar. O Amazonas foi o que mais abriu mercado institucional no ano passado, segundo o Ministério da Cidadania. O reflexo foi no crescimento do PIB agropecuário superior em 2019 sobre 2018”, concluiu.

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