Como uma fábrica de autopeças se educou para acolher um funcionário trans

Valentim Jesus, funcionário da F2J Lighting Interlagos(Reprodução/Divulgação)

Com informações do UOL

FLORIANÓPOLIS – De campanhas publicitárias a processos seletivos mais inclusivos, é notório que a pauta da diversidade chegou às empresas e ambientes corporativos. Em muitos deles, mais na propaganda do que na prática, é verdade. Afinal, é preciso levar em conta que há setores mais conservadores e outros menos. Culturalmente, uma produtora de cinema tende a ser mais aberta do que uma fábrica de autopeças, por exemplo. Mas a F2J Lighting Interlagos, antiga Valeo, sentiu a necessidade de fugir deste estereótipo.

No dia a dia da produção de faróis e lanternas para montadoras de veículos, surgiu outra demanda para os 550 funcionários dessa fábrica paulistana: aprender a conviver e melhor acolher um colega transexual. “O ambiente da indústria automotiva ainda é muito tradicional. Vejo as grandes empresas com ‘políticas de diversidade’, mas, na prática, ainda mais para pessoas trans, estamos bem distantes”, diz Jéssica Reis, gerente de qualidade. Jéssica é gestora de Valentim Jesus, inspetor de qualidade e homem transgênero que está há três anos na companhia.

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“Um dia, o Valentim chegou como quem não queria nada, fazendo rodeios. Depois de eu tentar entender onde que ele queria chegar, falou que tinha criado coragem para iniciar o processo de transição de gênero”, conta Jéssica, que diz que foi receptiva e o apoiou, mas não sabia como dar sequência ao assunto. Então, acionou o RH.

Valentim ficou preocupado com a reação da empresa: “Eu disse à minha supervisora que se isso fosse um ‘problema’ para empresa, que ela poderia me demitir, afinal eu sabia o que era preconceito, a vida inteira fui alvo por ser lésbica, agora muito mais por ser trans”, lembra Valentim. “Ela me ouviu e, depois disso, foi só felicidade.”

Mas antes, não tanto. “Conversando com minha esposa, ela percebeu que eu não estava bem. Sem saber muito bem por onde começar, me consultei com o médico da família, um endocrinologista, que me ajudou e me encaminhou a uma psicóloga”, diz Valentim. “Depois de um ano de terapia, tive certeza de quem sou, aí me deparei com meu maior medo: como ia ser na empresa?”

Ser trans na indústria automotiva

A relação de Valentim com a maioria dos colegas era “ótima”, mas ele sofreu preconceito de alguns deles. Quando Jéssica levou a questão ao RH, a empresa também não sabia direito como agir. “Tudo era muito novo para a gente, não tínhamos no quadro de colaboradores uma pessoa trans, quanto mais dar o suporte a uma pessoa em processo da transição de gênero. Definitivamente, não estávamos preparados”, reconhece Jéssica.

O RH procurou uma consultoria especializada, a Transcendemos, dirigida por Gabriela Augusto, que foi curadora de conteúdo em Ecoa. “A Gabriela fez uma série de palestras na empresa, com todo mundo, da diretoria aos colaboradores do chão de fábrica, abriu as portas para a discussão do tema, nos deixou totalmente à vontade”, diz Jéssica. Para Valentim, foi um alívio. “Quando a consultoria começou de fato, percebi que o que acontecia era mais falta de informação do que preconceito. Além disso, me senti seguro quando soube que quem faria seria uma mulher trans”, conta.

Segundo Jéssica, a consultoria, iniciada em dezembro de 2020, ensinou muita coisa a ela e a seus colegas por meio de treinamentos (presenciais e remotos), palestras e distribuição de material. “Cheguei a ouvir que era ‘só respeitar as pessoas e é isso aí’. Mas respeito é básico, todo mundo tem que ter. É preciso discutir, educar, mostrar o ponto de vista do outro. Empresas têm uma responsabilidade social, então mesmo que não haja uma pessoa trans no quadro de colaboradores é importante falar sobre o assunto.”

Processo vantagem

Para a empresa, todo o processo educativo também é vantajoso. “A cultura de diversidade faz parte da estratégia de uma organização, torna o ambiente de trabalho saudável, motivador, mais alegre”, diz Daniely Duarte, analista de recursos humanos da empresa.

Em maio, quando a Valeo foi vendida à F2J, os crachás dos funcionários precisaram ser atualizados. O RH procurou Jéssica para saber se Valentim adotaria o nome social. “Foi como a Gabi ensinou: ‘na dúvida, pergunte para a pessoa como ela quer ser chamada'”, respondeu a supervisora.

Orgulhoso com o novo crachá, Valentim diz que não tem mais problemas no convívio com os colegas: “Me fez enxergar que não estou sozinho. Por mais difícil que seja, ainda existem pessoas a te estender a mão e te ajudar a encontrar seu caminho”, finaliza.

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