Comunidade indígena no AM enfrenta escassez e luta por subsistência em meio à seca
Por: Carol Veras
09 de novembro de 2024
MANAUS (AM) – A seca extrema que assola o Amazonas desde julho de 2024 já reduziu o nível do Rio Negro, que banha a capital amazonense, em até 12,23 metros, impondo desafios às comunidades ribeirinhas e indígenas da região. Com o acesso à água e a alimentos cada vez mais limitado, as populações locais se esforçam para adaptar a rotina e garantir o mínimo necessário para a sobrevivência.
Uma dessas localidades afetadas pela estiagem é a Comunidade Nossa Senhora do Livramento, banhada pelo Rio Tarumã. O transporte, que antes era feito em cerca de 20 a 30 minutos saindo de Manaus, agora demora quase uma hora, pois o único meio de navegação disponível são as rabetas — pequenas embarcações movidas a motor de popa.

Em outubro deste ano, a equipe de reportagem da CENARIUM recebeu um convite feito pelo cacique Astério Baré para conhecer a comunidade. No local, vivem indígenas das etnias Baré, Tikuna, Mura e Miranha, que têm acesso à água potável por meio de um programa do Poder Público.
“Sem essa assistência, estaríamos completamente desamparados”, ressalta o cacique, destacando a precariedade que a seca trouxe para a comunidade. O programa mencionado é o “Água Boa”, idealizado em 2019, com unidades de fornecimento de água potável implantadas pela Defesa Civil do Amazonas e pela Companhia de Saneamento do Estado (Cosama).
A fome ainda é uma preocupação para a população indígena. De acordo com o relato do líder comunitário, as cestas básicas fornecidas pelo governo já não são suficientes para o sustento de toda a vila.
“Eu tenho 64 anos, mas nunca vi isso acontecer. A gente se alimenta de peixe, a gente tira água do rio. A gente sofreu muito ano passado, e hoje o sofrimento está do mesmo jeito. Não temos alimentação, não temos medicamento”, afirma o líder.

A cacica Jaguar Mura, outra liderança indígena, encontra-se em Manaus integrando discussões sobre a participação indígena na política e as necessidades urgentes das comunidades afetadas. Ela, que pertence à comunidade Capanã Grande, próxima a Manicoré (a 331 quilômetros de Manaus), não consegue retornar ao seu território devido ao baixo nível do Rio Madeira, que chegou a 9,07 metros de profundidade no último dia 8.
Na comunidade do Livramento, Jaguar reforça a importância de condições mínimas de subsistência para os povos indígenas durante esse período crítico. “A situação é de total abandono, e precisamos unir forças para enfrentar essa fase,” afirma.
A cacica conta que, além da comunidade do livramento, Capanã sofre com a escassez de recursos, mas não somente devido à seca histórica, mas também por conta do garimpo ilegal. “Lá não temos acesso à água potável, águas foram contaminadas por causa da presença dos garimpeiros. Algumas aldeias não têm nem condições de cavar um poço. Na nossa reserva morreram muitos peixes por conta da seca e do calor”, denuncia a também pajé.
“Para conseguirmos algo, precisamos fazer um abaixo-assinado, participar de muitas assembleias para obter êxito, e muitas vezes aguardamos anos. Para conseguirmos, precisamos fazer movimento. Nós temos que ir pra guerra e partir pra luta”, completa a líder Mura.

Com quase três décadas de atuação na defesa dos direitos indígenas, Jaguar Mura, cacica e ativista, relembra as raízes e desafios do movimento indígena no Amazonas. Segundo ela, o movimento foi iniciado por seu tio, o cacique Cláudio Mura, e é marcado por perdas e lutas intensas. “Meu primo faleceu lutando por medicações e morreu de tuberculose. Hoje, nossa grande dificuldade é que o movimento indígena enfraqueceu, talvez por conta de tantas promessas sem êxito,” lamenta.
Em 2012, Jaguar participou da Marcha das Mulheres Indígenas, onde ficou acampada por mais de 30 dias em Brasília (DF) e enfrentou repressão policial, incluindo golpes e spray de pimenta. Ela recorda que os grandes líderes indígenas de hierarquia, que mantinham a resistência ativa, já não estão mais presentes. “Nosso movimento ficou enfraquecido, e estamos tentando levantá-lo de novo,” afirma, demonstrando a urgência de revitalizar a luta indígena.
Diante da seca e da degradação ambiental que impactam diretamente os povos da floresta, Jaguar Mura expressa sua preocupação com as consequências das ações humanas. “Estamos vivendo uma calamidade. Os peixes estão morrendo, as aves desaparecendo, e isso é uma grande tristeza para nós,” reflete. Para ela, a destruição é resultado da ação humana, com queimadas e caça irresponsável, muitas vezes sem propósito de subsistência. “Pai Tupã deve estar com muita raiva do ser humano,” conclui.

Tradições e rituais de resistência
Apesar das dificuldades, a cacica Jaguar mantém viva a ancestralidade de seu povo. A pajelança, um ritual de purificação realizado pelos povos Mura, ganha um novo significado em meio à crise. O ritual, que utiliza ervas, cânticos e elementos naturais, é uma prática para afastar maus espíritos e proteger a comunidade das adversidades, sendo agora um símbolo de resiliência frente à estiagem histórica. “Este ritual fortalece a nossa união e nos conecta com a natureza, nos dando forças para enfrentar esses tempos difíceis,” explica a cacica.
Perspectivas para a seca e a necessidade de ajuda
De acordo com o Serviço Geológico Brasileiro (SGB), a seca na Amazônia deve se estender até dezembro de 2024, com o Rio Negro mantendo uma característica de “repiquetes” (subidas e descidas intermitentes do nível das águas) até o final do ano. A previsão é de que o rio só comece a subir novamente em janeiro de 2025. Até lá, a comunidade do Livramento e outras áreas indígenas seguem dependendo de doações e lutando para obter visibilidade e assistência do poder público.