Comunidades da Amazônia alertam para ‘sumiço’ da pororoca


Por: Fabyo Cruz

05 de novembro de 2024
Comunidades da Amazônia alertam para ‘sumiço’ da pororoca
Fenômeno natural da Pororoca (Allan Londes/Arquivo pessoal)

BELÉM (PA) – As pororocas, fenômenos que ocorrem no encontro das águas dos rios com as marés oceânicas e formam ondas de grande impacto nos Estados do Pará, Amapá e Maranhão, estão ameaçadas pelas mudanças climáticas. É o que afirmam ribeirinhos, surfistas e pesquisadores que presenciam no fenômeno um novo cenário, marcado por incertezas.

O surfista Allan Londres, de 24 anos, que reside em São Domingos do Capim, no Nordeste do Pará, cidade conhecida como a “Capital da Pororoca”, vive o evento há mais de uma década. Para ele, descer o rio surfando nas ondas geradas pela força das águas é uma experiência que mistura adrenalina e respeito pela natureza.

“O fenômeno da pororoca é uma coisa inexplicável”, conta Allan, com a emoção de quem já conhece as ondas como poucas pessoas. “Tem tudo a ver com o alinhamento da Lua, com a Nova, a Cheia… é uma coisa incrível!”, declarou.

Surfista paraense Allan Londres (Reprodução/Arquivo pessoal)

Ele lembra com saudade dos anos em que as ondas eram intensas e constantes. “Ficamos de 2019 até 2024 sem ver pororoca aqui”, explica. “Agora ela voltou, mas com menos força. Em 2019, por exemplo, estava muito alta, muito grande. Agora, a gente vê que ela aparece, mas não é mais a mesma”, afirma.

A rotina dos surfistas e ribeirinhos que dependem da pororoca mudou, forçando adaptações e impondo limites. A intensidade da onda varia de acordo com o alinhamento dos astros e a altura das marés, mas o fenômeno cada vez menos impressiona pela força. “A gente surfa à noite também, esperando a Lua refletir na água, um espetáculo lindo”, diz o surfista. No entanto, ele pondera: “Mas tudo isso está ameaçado!”.

Pororoca Marajoara

Para a ativista Izabel Cristina Miranda, de 44 anos, que é filha de uma das fundadoras da Comunidade Ribeirinha Rio Mandubé, no município de Chaves, no Arquipélago do Marajó, no Pará, a pororoca é um símbolo de identidade cultural e uma força incontrolável da natureza. Ela recorda a experiência de viver com a força das águas, que já presenciou desde pequena. “Eu só fico esperando ela passar para seguir viagem, mas tenho parentes que gostam de ir junto com ela. Literalmente, é a força das águas”, diz. “Tenho orgulho de pertencer aos Povos da Pororoca Marajoara”, ressalta.

Ativista Izabel marajoara Cristina Miranda (Reprodução/Arquivo pessoal)

Izabel lembra que, antigamente, a pororoca era tão presente que se tornou parte da identidade dos marajoaras. “Tínhamos até pessoas com o apelido de pororoca”, comenta, destacando como o fenômeno sempre foi respeitado por sua intensidade e beleza. No entanto, Izabel também percebe a mudança nos padrões da pororoca, que agora já não invade o rio com a mesma força de antes. “Ela aparece com mais força no inverno, e ainda tem até surf na Ilha das Pacas, mas o Rio Mandubé está secando, e isso preocupa muito”, desabafou.

Preservação

Tanto Allan quanto Izabel atribuem a fragilidade da pororoca ao impacto das mudanças climáticas, que afetam diretamente o equilíbrio dos rios da Amazônia. Allan observa como o aquecimento global e o desmatamento estão ameaçando a existência do fenômeno. “Esse ano ela voltou, mas bem mais fraca. O aquecimento global quebrou muito a nossa pororoca”, lamenta o surfista.

Izabel também observa as consequências do clima sobre a natureza que sustenta sua comunidade e suas tradições. “A pororoca sempre foi a nossa força. Ver que ela está desaparecendo nos preocupa muito. O que será da nossa cultura e do nosso território sem ela?”, questiona, mostrando a relação profunda que o povo marajoara tem com as águas do rio e com a própria pororoca.

Árvore caída, rastro deixado pela pororoca (Reprodução/Arquivo pessoal)

Apesar das dificuldades, os moradores de São Domingos do Capim e de Chaves não desistem de lutar pela preservação do fenômeno. Allan e outros surfistas locais organizam eventos e competições para atrair atenção ao fenômeno e sua importância cultural e turística. “A gente faz surf noturno aqui também. À noite, a Lua reflete na água, e a beleza é única! Mas não sabemos até quando isso será possível”, diz ele.

Izabel, por sua vez, se engaja em coletivos que buscam preservar os rios e a cultura ribeirinha. Como parte das “Filhas da Pororoca Marajoara”, ela participa de rodas de conversa e eventos de conscientização sobre o impacto ambiental. “Eu vejo meu trabalho como uma luta pela continuidade da nossa cultura. Nossa pororoca não pode desaparecer!”, declara Izabel.

Mudanças climáticas e sedimentação

À CENARIUM, o pesquisador Adriel Guimarães Carneiro, doutorando em geofísica pela Universidade Federal do Pará (UFPA), compartilhou detalhes sobre as características e os desafios enfrentados por essas ondas na Amazônia e sobre como o fenômeno tem sofrido alterações com o tempo.

No Pará, a pororoca é bem conhecida no município de São Domingos do Capim, onde, segundo Adriel, o fenômeno ocorre em proporções menores e não de forma constante, dependendo de condições ideais de maré para acontecer. No Amapá, as pororocas são mais intensas, devido à grande influência das marés na costa norte do Estado, com ondas de maré que chegam a impressionantes 11 metros de altura em locais como o Rio Araguari, o Sucuriju e o Igarapé do Inferno.

O pesquisador afirma que a pororoca depende de um “checklist” de fatores para ocorrer: uma geometria de rio adequada, condições ideais de maré e inclinação do leito, entre outros. “Mudanças naturais e induzidas por atividades humanas podem modificar a extensão e a intensidade do fenômeno, fazendo com que ele se forme em locais diferentes de onde era registrado anteriormente ou ocorra com menos frequência”, explicou Adriel. Embora o fenômeno da Pororoca continue presente na região, o pesquisador diz que há riscos de que as pororocas diminuam em intensidade e frequência em certos locais.

O pesquisador Adriel Guimarães Carneiro (Reprodução/Arquivo pessoal)

O pesquisador explica que a sedimentação — a acumulação de sedimentos nas fozes dos rios — pode barrar o avanço das ondas para regiões mais internas, fenômeno já observado no rio Araguari, localizada na região central do Amapá, que nos últimos anos desenvolveu uma barreira arenosa, restringindo o curso do rio e dificultando a ocorrência da Pororoca.

Além disso, o aumento do nível do mar, impulsionado pelas mudanças climáticas, contribui para essa dinâmica. Com o avanço das águas oceânicas, o transporte de sedimentos pelos rios para o oceano torna-se mais complicado. Isso resulta em um acúmulo de material sedimentar nos fundos dos rios, criando camadas compactas e difíceis de remover, o que, por sua vez, pode alterar as características da pororoca ao longo do tempo.

A ação humana, especialmente por meio da construção de hidrelétricas, é outro fator que potencialmente influencia o fenômeno. Hidrelétricas localizadas na cabeceira dos rios, embora não afetem diretamente a área costeira, podem alterar o fluxo natural dos rios, impactando indiretamente a pororoca. Contudo, Adriel ressalta que o efeito dessas barragens é secundário e que não há uma certeza clara de que a diminuição do fluxo dos rios compromete necessariamente a formação das ondas.

“A pororoca, que já foi mais comum em décadas passadas, atualmente é um fenômeno que ocorre principalmente nas maiores marés do mês, e sua continuidade é uma incerteza”, disse o pesquisador. Contudo, Adriel acredita que, com o avanço das pesquisas e simulações matemáticas sobre marés e sedimentação, será possível entender melhor o comportamento desse fenômeno amazônico e, quem sabe, prever seu futuro na região.

Leia mais: Belo Monte: ribeirinhos resistem e estudo revela consequências de hidrelétrica no Pará
Editado por Adrisa De Góes

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