Concurso da CMM: um caso de racismo institucional e pacto da branquitude


Por: Luciana Santos*

26 de novembro de 2024
Concurso da CMM: um caso de racismo institucional e pacto da branquitude
Câmara Municipal de Manaus (Composição:Weslley Santos/Cenarium)

A opção da Câmara Municipal de Manaus (CMM) de não incluir uma reserva de vagas para pessoas negras, quilombolas e indígenas no edital do concurso público que está realizando para preenchimento de cargos da instituição merece uma análise não só do ponto de vista jurídico, mas também socio-histórico e ético.

Quando a instituição alega que não existe no município de Manaus uma lei que obrigue a reserva de vagas em concursos públicos para esses grupos historicamente marginalizados, ela assume publicamente que os vereadores de nossa capital, assim como o Executivo municipal, nunca se preocuparam com essa pauta legítima, já abraçada pelo governo federal e por diversas unidades da federação.

O Brasil, como sustentado pelo Ministério Público do Amazonas na ação movida contra o edital da CMM, ratificou, em janeiro de 2022, sua adesão ao texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Como previsto em nossa Constituição Federal, no art. 5º, § 3º, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. E esse é o caso da Convenção Interamericana contra o Racismo. Sendo assim, os artigos relacionados às ações afirmativas presentes na carta aprovada durante a sessão da Organização dos Estados Americanos, realizada na Guatemala em 2013, possuem status constitucional no Brasil.

Dentre eles está o art. 5º: “Os Estados Partes comprometem-se a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos (grifo nosso). Tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias ou incompatíveis com o propósito ou objeto desta Convenção, não resultarão na manutenção de direitos separados para grupos distintos (grifo nosso) e não se estenderão além de um período razoável ou após terem alcançado seu objetivo”.

É curioso como ações afirmativas para grupos em vulnerabilidade social são constantemente alvos de polêmicas. Vale lembrar o caso das cotas de acesso ao Ensino Superior, que chegaram a ser debatidas no Supremo Tribunal Federal, sendo entendidas como constitucionais pela Corte.

O que pouca gente fala, e que estrategicamente não é ensinado nas aulas de história (apesar da Lei Federal 10.639/2003), é que “cotas” já existiram para beneficiar pessoas brancas e proprietários de terra neste País. Cito duas: a Lei do Boi (Lei Federal 5.465/68), que garantia vagas em escolas agrícolas e cursos de agronomia e medicina veterinária para filhos de fazendeiros (o direito à terra é até hoje objeto de luta de negros, quilombolas e indígenas); e a própria lei de incentivo à migração europeia no fim do século 19, quando essas pessoas recebiam terras, dinheiro e outros benefícios para migrarem para o Brasil, contribuindo com uma política de branqueamento do Estado brasileiro (as teorias “científicas” da época diziam que o País era atrasado por conta da miscigenação com negros e indígenas).

Então, quem foi mais beneficiado historicamente com cotas? E, focando no serviço público, as pesquisas demonstram o quanto é inferior o número de servidores negros, indígenas e quilombolas. Essa disparidade, assim como no caso do acesso ao Ensino Superior, é fruto dessa desigualdade social (é só olhar os dados do IBGE, que são oficiais), que tem como base o racismo, que é sim estrutural e tem como dois de seus elementos o Direito e a Política. Se pararmos para estudar ambos, vamos entender como sempre foram utilizados pela elite para manutenção de poder e privilégios.

E racismo é manutenção de poder. Logicamente, não é de interesse da elite política e econômica deste país que os grupos tidos por eles como subalternos passem a ocupar lugares de poder ou a ascender socialmente. No livro O Pacto da Branquitude, a professora Cida Bento demonstra como essa elite se articula de forma a manter os benefícios que consideram inerentes ao seu grupo racial e social, formando um “pacto narcísico”.

Esse pacto estará presente nas instituições públicas e privadas, com regras que não são expressas formalmente (obviamente, pois racismo é crime), mas que dificultam ou impedem os direitos dos grupos subalternizados. O jurista Adilson Moreira, em Tratado de Direito Antidiscriminatório, também ensina que normas jurídicas, políticas públicas ou decisões institucionais podem não trazer nenhuma regra especificamente prejudicial a um determinado grupo e, mesmo assim, conter teor discriminatório.

A própria Convenção Interamericana contra o Racismo classifica a discriminação racial indireta: “é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico”. O racismo no Brasil é velado e está nas entrelinhas.

Os argumentos defendidos pela Procuradoria da CMM podem arrotar neutralidade, mas também deixam no ar a podridão da exclusão e do discurso vil da meritocracia.

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(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.

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