Condenação de militares por tentativa de golpe resolve ponto aberto no Brasil, diz professor
Por: Ana Cláudia Leocádio
12 de setembro de 2025
BRASÍLIA (DF) – A condenação inédita de seis militares de alta patente das Forças Armadas por crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre eles um ex-presidente República, resolve um ponto aberto na relação entre a sociedade civil e os militares, que já protagonizaram a tomada de poder após rupturas da normalidade constitucional diversas vezes no País. Essa é a avaliação do professor de Direito Constitucional e Ciência Política, Maurício Ebling.
“A questão de condenar o presidente, claro que é relevante, mas acho que a coisa, historicamente falando, mais relevante é a questão dos militares. Eu acho que para a história do Brasil, essa relação entre a sociedade civil e os militares é um ponto ainda aberto, que a gente estava precisando resolver faz tempo”, analisou o professor.

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou, nessa quinta-feira, 11, oito réus, dos quais seis são militares de alta patente, sendo cinco do Exército, a penas que vão de 27,3 a 16 anos de prisão em regime fechado pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e ao patrimônio tombado, além de organização criminosa armada.
O ponto aberto entre civis e militares no Brasil, citado por Ebling, foi demonstrado pelo historiador Carlos Fico, em uma tabela publicada nas redes sociais. Especialista em História do Brasil República e Teoria da história, Fico aponta que foram registrados 15 eventos de golpes, tentativas de golpe e pronunciamentos militares, desde 1889, quando houve a deposição do imperador Dom Pedro II. Destes, oito prevaleceram e, dos sete que fracassaram, em seis deles os envolvidos foram todos anistiados, o que ressalta ainda mais a relevância desse julgamento pelo STF, pela punição inédita de militares.

A própria ministra Cármen Lúcia, que formou a maioria para condenar os oito réus, no julgamento desta quinta-feira, ressaltou o levantamento de Fico e livros de outros especialistas, sobre como os golpes de Estado prosperam e da importância de se ter uma Constituição que proteja o Estado Democrático de Direito contra esse tipo de ataque.
Além da ministra, o ministro Carlos Zanin também votou pela condenação dos denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) na Ação Penal 2668, encerrando assim o julgamento com o placar de 4 a 1. Assim como o ministro Flávio Dino, eles acompanharam integralmente o voto do relator Alexandre de Moraes.

O professor Maurício Ebling foi um dos 1,2 mil inscritos pelo STF para acompanhar o julgamento no tribunal, nos últimos dois dias. Para ele, é uma coincidência que, no ano em que o Brasil ganhou um Oscar com o filme “Ainda estou aqui”, de Walter Sales, que fala justamente da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), o STF tome uma decisão história como esta, onde “se inverte a relação de forças entre a sociedade civil e os militares”. “Pela primeira vez, a sociedade civil consegue impor punição para os altos cargos dos militares”, ressaltou o professor.
Ex-presidente pega maior pena
A punição mais alta foi aplicada ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que recebeu a pena de 27,3 anos de prisão, por ser o líder da organização, tornando-se o primeiro ex-presidente a ser condenado por golpe de Estado. Capitão da reserva do Exército, ele foi condenado ao lado do aliado durante seu governo, general quatro estrelas do Exército Walter Braga Netto, que foi sentenciado em 26 anos. Em seguida está o almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, com 24 anos. Outros dois generais quatro estrelas também foram condenados: Augusto Heleno, com 21 anos, e Paulo Sérgio Nogueira, que recebeu a menor pena entre todos, 19 anos. Todos com cumprimento inicial em regime fechado.
O tenente-coronel Mauro Cid, por ter assinado acordo de delação premiada recebeu uma sentença de dois anos em regime aberto, entre outros benefícios previamente acertados. A execução das penas não é imediata, pois o processo precisa transitar em julgado.
Os ministros consideraram haver provas robustas de que havia uma organização criminosa armada, liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, com o objetivo de desacreditar as instituições, como o Poder Judiciário e o sistema eleitoral eletrônico, para estimular ações antidemocráticas que justificassem uma ruptura institucional para permanecer no poder e impedir governo legitimamente eleito de tomar posse. Segundo a PGR, as ações tiveram início em julho de 2021 e culminaram nos ataques aos prédios dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.
O ministro Luiz Fux foi o voto divergente e ficou vencido, ao final do julgamento, sem votar pela definição das penas daqueles que absolveu. Para o magistrado, a PGR não conseguiu apresentar provas que ligassem os acusados aos fatos narrados capazes de justificar a tipificação dos cinco crimes. Dos oito réus, o ministro condenou apenas o tenente-coronel Mauro Cid e o general Walter Braga Neto pelo crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, e os absolveu nos outros quatro crimes.

Na avaliação do professor Ebling, ao contrário dos aliados do ex-presidente, que consideram as penas exageradas, a dosimetria adotada, considerando as peculiaridades do processo, foi equilibrada. “Foi prudente. O STF estabeleceu uma pena razoável, não muito exagerada, mas também não muito baixa”, afirmou.
Apenas dois civis foram condenados entre os oito, ambos delegados da Polícia Federal (PF): Alexandre Ramagem e Anderson Torres, que eram membros do primeiro escalão. Por ser deputado federal, a Câmara aprovou a suspensão de toda a ação penal contra Ramagem, mas a Primeira Turma aceitou suspender apenas dois crimes, ocorridos depois da diplomação como parlamentar (dano qualificado e dano a patrimônio tombado). Torres foi condenado a 19 anos de prisão, enquanto Ramagem teve a pena definida em 16 anos, 1 mês e 15 dias de prisão, em regime inicial fechado.
Outros atos da condenação
Além das penas de prisão, os réus também sofrerão outras punições, como o pagamento de indenização solidária de R$ 30 milhões. O valor tomou como base os danos causados aos prédios dos Três Poderes, sendo R$ 15 milhões no Supremo; R$ 9 milhões no Palácio do Planalto; R$ 3,5 milhões no Senado; e R$ 3 milhões na Câmara (R$ 3 milhões).
Além disso, os ministros determinaram que Superior Tribunal Militar (STM) seja comunicado, quando transitar em julgado a ação penal, para a “declaração de indignidade para o oficialato”, que significa a perda dos postos e patentes nas Forças Armadas.
Da mesma forma, a Câmara dos Deputados deverá ser comunicada para declarar a perda do mandato de Alexandre Ramagem, porque sua condenação excede os 120 dias permitidos por lei. Ele e Anderson Torres também perderão o cargo de delegados da PF. Todos os oito condenados também ficarão inelegíveis por oito anos.
Defesas estudam tipos de recursos
Com a condenação, as defesas dos oito réus avaliam que recursos apresentar a partir da publicação do acórdão da decisão, sem data prevista de ocorrer ainda. Os advogados dos generais Paulo Sérgio e Augusto Heleno já estudam ingressar com embargos infringentes junto ao plenário do STF para tentar buscar a absolvição, apesar dos precedentes do Supremo indicarem ser inadequado este instrumento, quando um julgamento encerra com apenas um voto divergente. A certeza mesmo será o ingresso de embargos de declaração para esclarecer pontos da decisão.
Segundo o professor Ebling, o STF não tem acatado embargos infringentes e até mesmo habeas corpus neste tipo de processo penal e acredita que o discurso do presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, ao encerrar o julgamento, já sinaliza que esse processo deverá ser encerrado mesmo na Primeira Turma.
“Como o ministro Barroso falou, eu fiquei com a impressão de que o negócio está sendo resolvido por aqui, então acredito que já seja uma sinalização de que é um entendimento de toda a Corte. Mas como a gente tem tido muitas surpresas ultimamente, acho que tem que esperar para saber exatamente o que vai acontecer. A tendência seria para estar resolvido aqui (1ª Turma)”, concluiu.
Barroso fala em encerrar “ciclo do atraso”
O ministro Barroso disse que fez questão de participar do final da sessão de julgamento do “Núcleo 1” da trama do golpe e elogiou o trabalho de todos os membros da Primeira Turma e do procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Para o magistrado, a conclusão desse julgamento encerra um “os ciclos do atraso na história brasileira”. “Acredito que nós estejamos encerrando os ciclos do atraso na história brasileira, marcados pelo golpismo e pela quebra da legalidade constitucional. Sou convencido que algumas incompreensões de hoje irão se transformar em reconhecimento futuro”, afirmou.
Barroso chegou ao plenário às 18h33 e sentou-se nas cadeiras reservadas aos advogados e espectadores da sessão, mas logo foi chamado a sentar-se ao lado do presidente da Primeira Turma, Cristiano Zanin, no assento reservado à secretária do colegiado. Em determinado momento, o relator da Ação Penal 2668, Alexandre de Moraes, chegou a fazer uma brincadeira ao dizer que era a primeira vez que o presidente a Primeira Turma era “secretariado” pelo presidente do STF, arrancando risos de todos.

Para Barroso, nenhum ministro sairá feliz da sessão de julgamento, mas saem cientes de que cumpriram suas missões “com coragem e serenidade as missões que a vida nos dá”. Segundo o presidente da Corte, apenas alguém com desconhecimento dos fatos ou com motivação descolada dos destes encontrará no julgamento algum motivo político.
Ele ressaltou o respeito pelo voto divergente do ministro Luiz Fux, que absolveu seis réus de todos os crimes e condenar dois por um dos crimes imputados, por não ter visto no processo, provas capazes de demonstrar nexo entre as atitudes e a tipificação pela lei penal. “Pensamento único só existe nas ditaduras”, afirmou o ministro.
Quadro das condenações:
Jair Messias Bolsonaro
- 27 anos e 3 meses em regime inicial fechado;
- pagamento de 124 dias-multa equivalente a 2 salários-mínimos cada dia;
- perda da patente de capitão da reserva do Exército;
- oito anos de inelegibilidade.
Walter Souza Braga Netto (ex-ministro da Defesa e da Casa Civil)
- 26 anos de prisão em regime inicial fechado;
- pagamento de 100 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda da patente de general do Exército;
- oito anos de inelegibilidade.
Anderson Torres (ex-ministro da Justiça)
- 24 anos em regime inicial fechado;
- pagamento de 100 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda do cargo de delegado da Polícia Federal.
Almir Garnier santos (ex-comandante da Marinha)
- 24 anos em regime inicial fechado;
- pagamento de 100 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda da patente de almirante da Marinha;
- oito anos de inelegibilidade.
Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional)
- 21 anos em regime inicial fechado;
- pagamento de 84 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda da patente de general do Exército;
- oito anos de inelegibilidade.
Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa):
- 19 anos em regime inicial fechado;
- pagamento de 84 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda da patente de general do Exército;
- oito anos de inelegibilidade.
Alexandre Ramagem (deputado federal e ex-diretor da Abin)
- 16 anos, 1 mês e 15 dias em regime inicial fechado;
- pagamento de 50 dias-multa de um salário-mínimo;
- perda do cargo de delegado da Polícia Federal;
- perda do mandato de deputado federal.
- oito anos de inelegibilidade.
Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro)
- recebeu benefícios do acordo de delação premiada;
- 2 anos em regime aberto;
- Sem multa;
- Restituição de bens, extensão das garantias ao pai, esposa e filha mais velha;
- medidas de segurança da Polícia Federal.