Corpo-território em contexto feminista
Por: Iraildes Caldas*
19 de novembro de 2025A expressão corpo-território surgiu pela primeira vez em 2003, durante o Fórum Social das Américas, realizado na Guatemala. Aos poucos, o conceito foi sendo delineado e hoje é utilizado para afirmar uma condição de cidadania das mulheres, uma expressão potente com forte teor político para fazer frente a um capitalismo patriarcal, que sempre pretendeu transformar em mercadoria o corpo da mulher.
Em 2012, Sílvia Camurça publicou um artigo intitulado “Nosso corpo, nosso primeiro território”, no qual explica a construção desse conceito fazendo uma analogia com o slogan feminista da década de 1970, “Nosso corpo nos pertence”. Nesta bandeira de luta, há a afirmação do eu de cada mulher sobre o próprio corpo, uma autoafirmação para deixar claro ao capital e a seus agentes transnacionais que as mulheres não eram mercadorias e que cada uma tinha identidade e autonomia sobre si mesma.
Corpo-território é um conceito mais abrangente: está associado ao território onde as mulheres habitam, mas é mais do que o território e a própria terra. É a própria vida, na medida em que o corpo é a casa, a matéria primária onde habita o espírito e todas as nossas memórias, pelas quais a alma tem livre-arbítrio (Santo Agostinho, 2023). “Corpo-território é o lugar onde se vive”, diz Sílvia Camurça (2012), “onde se produz, se cuida do viver, se faz cultura, arte, é o lugar das raízes, onde as mulheres constroem suas histórias.”
Esse conceito, com efeito, não se aplica só às mulheres indígenas, mas também às quilombolas, às mulheres da floresta e às de comunidades tradicionais do Brasil e da América Latina. Essas mulheres lutam por seus territórios, mas também contra o agronegócio, que envenena os alimentos com agrotóxicos, ou contra as hidrelétricas de transposição de rios, que expulsam as populações de seus espaços de vida.
As mulheres, ao lutarem por seus territórios, defendem a própria vida. Lutam contra o grande capital, que as considera “presas” fáceis da indústria cosmética e farmacêutica, da estética corporal e farmacológica, que parece dispor de seus corpos para o acúmulo elevado de cifras econômicas. Lutam contra a exploração e a precarização do trabalho, cujos dividendos, inferiores aos dos homens, não as ajudam a minorar os efeitos da opressão. Lutam contra o tráfico de mulheres, que vilipendia e vende seus corpos em um mercado rentável, cujo valor econômico ostenta o segundo lugar, abaixo apenas do tráfico de drogas.
As mulheres, enfim, têm seus corpos violentados sob variadas formas. Essas violências carregam uma dimensão psicológica que atinge profundamente o ser feminino. Elas convivem cotidianamente com um sistema de noções e ideias que deprecia sua imagem diante da sociedade (Torres, 1997). Essas violências morais e simbólicas constituem uma espécie de tortura às suas vidas, desencadeando doenças como ansiedade, depressão, anorexia, angústia generalizada e até suicídio. Desenvolvem medo dos homens, o que as impede de construir uma autonomia emocional capaz de garantir o seu bem-estar.
A violência política é, hoje, a pecha que atinge fortemente a vida das mulheres, principalmente aquelas que conquistaram espaços de poder não só no parlamento, mas também nas instituições e até mesmo nas lideranças comunitárias, que causam medo aos homens pela perda de seus privilégios. São mulheres que sofrem ameaças, torturas psicológicas, difamações e até ameaças de morte. O corpo da mulher, parte primeva de sua existência, acaba sendo matável (Agamben, 2009) pelas inúmeras violências que sofrem.
O corpo-território sangra sob o vilipêndio do grande capital e da sanha cínica de um patriarcado que se recria historicamente em todas as sociedades. A vida é o nosso território, é a nossa identidade, a nossa história. É dentro do corpo-território que vivemos nossos sentimentos, afetos e amores, nosso desejo, prazer e dores. Enfim, é nele que vivemos a nossa própria vida, nossa casa, nossa terra. A existência vale a pena ser vivida se tiver sentido para as mulheres.