Crime e castigo: a estigmatização das mulheres em casos de assassinatos passionais

Especialistas comentam sobre a prática da sociedade em culpar a mulher constantemente

Priscilla Peixoto – Da Cenarium

MANAUS – O envolvimento extraconjugal de Jordana Azevedo Freire com o sargento do Exército Brasileiro Lucas Guimarães, assassinado no último dia 1º de setembro, tem se destacado nos noticiários e nas mídias sociais. Dentre várias postagens na internet sobre o caso, não é difícil notar comentários que ressaltam muito mais a traição de uma mulher casada do que a execução da vítima com disparos de arma de fogo na cabeça que, segundo Polícia Civil do Estado, teve como mandante o marido de Jordana, Joabson Agostinho Gomes. Um comportamento presente na sociedade onde quase sempre culpa a mulher em detrimento dos erros e atitudes radicais dos parceiros.

Mesmo sem tirar os erros de fato cometidos por Jordana, ainda sim é possível notar a replicação do comportamento machista presente no pensamento da sociedade, onde Joabson Gomes, dono de uma rede de supermercados, ao descobrir a relação extraconjugal da esposa com Lucas, encontra na morte a “possível resolução do problema” e consequentemente passa ao status de esposo traído e Jordana vira alvo dos “juízes de internet”, que a responsabilizam pela decisão do parceiro de interromper abruptamente a vida de outra pessoa.

PUBLICIDADE

Na leitura e análise do psicólogo Adan Silva, o caso ilustra mais um caso de misoginia e posse. “Mais um caso típico do homem que se sente dono da mulher. Isso é uma construção histórica e estrutural do que é ser mulher na sociedade. Ainda carregamos essa influência do pensamento judaico-cristão, da Eva traidora e do macho indefeso e diversas construções do que é pecaminoso. As pessoas costumam se incomodar e pensar dentro dessa caixa, tendo a mulher como posse e vista como ser naturalmente pecaminosa e errada”, explica o psicólogo.

Jordana Freire ao lado do esposo Joabson Gomes e a vítima Lucas Guimarães (Reprodução/Internet)

Posição inferior

Para a feminista e mestra em Sociologia Marklise Siqueira, outra questão que auxilia a “culpabilização” da mulher é o constante posicionamento inferior na qual a figura feminina é colocada. “Na análise que a gente faz enquanto movimento feminista e da sociologia, isso é um traço de uma sociedade marcada num processo em que tudo que ela faz ou até mesmo o que ela não faz tem culpa. Isso se encaixa também para violência doméstica. Esse traço é muito forte na formação brasileira e coloca a mulher no lugar passividade e retira os homens do foco e acabamos com o dificuldade de repensar de fato o que é problemático no lugar correto”, comenta a socióloga.

Questionamentos

Para a doutoranda em História da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e ativista Michele Pires, os pontos em torno do caso, mais do que respostas, trazem diversos questionamentos. Michele acredita que nestes casos, ao observar o noticiário, é necessário uma reflexão sobre o machismo que atravessa a sociedade ainda que de forma inconsciente, muitas vezes silenciando a mulher.

“É importante nos perguntarmos algumas coisas como, por exemplo, ela ‘fugiu’ porque queria ou porque foi coagida pelo marido? Quando colocamos essa indagação passamos então a refletir a prática de uma estrutura de pensamento e comportamental que tenta coagir, intimidar e retirar qualquer possibilidade de fala da mulher. Quais as violências domésticas que as mulheres nesta situação vivem? Mais do que respostas, creio que tenha que ser colocado aqui perguntas pra gente entender o porquê há essa inversão ou proporção para algo que não deveria ter”, diz Michele Pires.

A sociedade culpa a mulher em detrimento dos erros e atitudes radicais de seus parceiros (Reprodução/ internet)

Reflexão e patriarcado

De acordo com a psicóloga e sexóloga Neyla Siqueira, quando o assunto envolve sexo, a mulher sempre será a “ré no tribunal da moral e dos bons costumes”, ao ponto de inverter o peso e consequência de uma culpa que lhe é forjada sem cerimônia.

“Hoje, não está se falando de um homem que mandou matar, está se falando da mulher que traiu, que desviou dinheiro, como se fosse a única culpada de todo processo e responsável por tudo. Quando na verdade, estamos falando de uma masculinidade frágil que não soube lhe dar com traição e tentou resolver as coisas de uma forma criminosa. Isso é reflexo de nossa sociedade patriarcal, onde se atribui a culpa de uma decisão errada na mulher, onde é mais interessante um debate em relação à vida sexual dela ao principal teor que é uma vida que se foi e como isso vai ser punido”, explica a especialista.

A sexóloga ressalta que o comportamento de julgamento engloba, inclusive, outras mulheres que, por vezes, sem perceber também assumem uma atitude machista endossando o tribunal social que condena. Ela aproveita o contexto para promover o seguinte questionamento:

“Se fosse ao contrário, será que estariam condenando o adúltero? Com toda certeza eu digo que não. Na verdade estariam acusando a mulher de louca, sem inteligência emocional e, de novo, acusando de uma outra forma a mulher. Vale ressaltar aqui que não estamos falando de caráter, relacionamento aberto, fechado ou monogamia, isso é outra coisa. O que ressaltamos aqui é comportamento da sociedade que infelizmente é replicado por décadas”, afirma.

Outro caso

Em 12 de novembro de 2014, a então estudante de Direito Denise Almeida Silva, de 34 anos, sofreu uma tentativa de homicídio ao viver um caso extraconjugal e triângulo amoroso onde todos os envolvidos eram casados. Na ocasião, o empresário Marcos Souto, além de ter um relacionamento às escondidas com Denise, também mantinha uma relação com a socialite Marcelaine Schumman.

Shummman não se conformou em viver um triângulo amoroso e no lugar de terminar o relacionamento, escolheu responsabilizar a “rival” por atrapalhar a relação com o então amante. Apesar de ter sido encomendado por uma mulher, o caso também integra a lista onde a figura feminina é sempre o “problema”

Na época, Marcelaine encomendou o assassinato de Denise. Ela ofereceu R$ 7 mil para que o executor matasse a vítima. Atingida por disparos de arma de fogo, ela foi levada para o Hospital 28 de Agosto e depois transferida para uma unidade de saúde particular de Manaus recebendo alta dois dias após o crime. A socialite foi condenada a sete anos e nove meses de prisão em regime semiaberto e, atualmente, cumpre prisão domiciliar.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.