Crônicas do Cotidiano: ‘Cavalo não desce escada’

O bordão é de autoria de Ibrahim Sued (1924-1995), jornalista, apresentador de TV e colunista social, que retratou a “Dolce Vita” da alta elite, cínica e distante do Brasil real (ver “Clube dos Cafajestes”, Google), e os bastidores dos conchavos entre políticos e empresários, tramando grandes negócios, nem sempre republicanos, entre os anos 40 e o final do século 20: “Olho vivo, que cavalo não desce escada”, isto para dizer que diante de um perigo é melhor ficar esperto. Os acontecimentos da semana confirmam o bordão, não só em sua factualidade. O Cavalo “Caramelo” virou símbolo de resistência e resiliência dos Gaúchos em meio às enchentes, resistindo a tudo, por mais de dois dias, de pé, sobre o telhado de um galpão quase coberto pelas águas. O que ainda dá vida ao bordão de Sued, se reporta, sobretudo, à égua que foi subindo as escadas de um prédio de condomínio e alojou-se em um apartamento, no terceiro andar, por 10 dias e foi içada pelos bombeiros, já que “cavalo não desce escada”! Hiperbolicamente aplicado à política, tudo nos leva a crer que os políticos que não tomaram a sério o bordão em comento terão que pular do mais alto degrau da escada em que subiram, pois não terão chance de um içamento confortável e salvador.

Vejamos o caso da Petrobras e do seu mais alto dirigente. O mesmo pode acontecer com os lacradores, aproveitadores da desgraça alheia, espalhando Fake News, bem no estilo e no método do “gabinete do ódio”. Exemplos de vilania dessa gente não faltam: o Prefeito de uma cidade alagada, que destila ódio, no primeiro contato com um Ministro que lhe oferece ajuda para salvar vidas em seu município e, aos berros, grava a mensagem para impulsioná-la nas redes sociais da sua bolha; a postagem, mostrando uma esquadrilha de aviões sobre o céu dos Pampas, “mandados pelo Governo de Israel para ajudar o povo abandonado pelo governo Lula” para salvar vidas; e o “clamor por ajuda ao governo federal”, feito pelo Governador do Estado de forma imprópria, fora do protocolo e, dias depois, pedindo que cessem as doações de fora para não prejudicar o comércio local; e tantas outras atrocidades espalhadas pelas redes sociais, tais como fotos de corpos boiando, caixões sendo estocados para enterros de vítimas insepultas da tragédia e outras maldades inimagináveis que estão sendo apuradas e que comprometeram as tarefas dos resgates de pessoas e animais.

Eventos trágicos devem ser uma oportunidade para a reflexão sobre a resistência do ser humano às adversidades que podem lhe custar a vida; sobre a sua capacidade de sobrepor-se às consequências da sobrevivência; sobre a reafirmação dos sobreviventes como sujeitos de direitos e sujeitos sociais, com papel relevante na vida política. Podemos até estranhar e querer separar os acontecimentos da política formal, mas isso é impossível, pois nada fica de fora da economia política e, portanto, da política partidária que sustenta as estruturas de poder. É dela que dependem os recursos materiais imediatos, sem os quais tudo piora; é dela que dependem os recursos financeiros que garantirão ou não a reconstrução do “tudo destruído”. As tragédias tornam-se, também, objeto dos cálculos economicistas do “senhor mercado”, o que impacta o sistema e as estruturas de governo. E, por aí, podem passar despercebidas as boas e as más intenções que afetam o conjunto da Nação sem que sejam racionalmente percebidas.

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No caso em tela, solidariamente, o Povo Brasileiro vai arcar com todos os valores da reconstrução dispendidos pelo Governo Federal, sem que nos expliquem o porquê dos Estados mais ricos da Federação, serem os maiores devedores da União (S.Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) e, como tal, não dispõem de reservas para cobrir fenômenos adversos. E não é por outra razão a não ser as razões de governo, que são técnicas, econômicas e políticas, inerentes ao papel de responder pela Nação e defendê-la, que as forças de pressão se revelam, se digladiam e se confrontam com os Governantes no poder, às vezes em lutas inglórias ou indecentes, pois está em jogo o mando e o poder de decisão de quem governa. Como “cavalo não desce escada”, o governo não vai renunciar às prerrogativas de comando de que dispõe. As águas do Guaíba estão baixando, ainda se ouve o grito dos necessitados que perderam tudo ou quase tudo. Ouve-se, também, o estridente grito dos que lutam por seus privilégios através de seus prepostos, como sempre, sorrateiramente. E isto explica tudo!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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