Crônicas do Cotidiano: ‘É tarde, é tarde demais’

“Palavra alguma ilumina -/ Deus nenhum levanta a mão -/ até onde alcança a vista/vejo terra em vastidão.//Sombra nenhuma se move,/forma alguma se desfaz./E mais uma vez eu ouço:/é tarde, é tarde demais” (Hannah Arendt. Também eu danço: poemas. Belo Horizonte: Relicário, p. 17, 2023). Inebriado com o que leio e recitando para mim mesmo, trago a todos uma face desconhecida, para mim, da filósofa e jornalista, que tanto nos encanta com o seu pensamento límpido e quase sempre atual sobre a situação política do nosso tempo, mesmo tendo nos deixado em 04/12/75. Primeiro poema (fase, 1923-1926), sem título, poucos versos, concisos e densos, a revelar, ainda no início da carreira como pensadora, os dilemas de seu tempo, um pós-primeira guerra de muita desilusão. A vastidão do mundo contrasta com a luta imensa das potências mundiais para dividir entre si a terra dos continentes e ampliar seus novos domínios coloniais. A mesma ambição, imagens de um mundo que nem a mão dos deuses consegue deter. Parece-lhe tarde demais a redenção da humanidade sobre a sua desumanidade, saindo de uma guerra e já preparando outra. Ao ver os fatos que desfilam diante de nós, as ameaças que pesam sobre o que já foi construído e, em parte, desfeito ou em processo de erosão, ouvimos, novamente, esse grito: “é tarde, é tarde demais”! Distantes cem anos do grito de Arendt, o mundo se reinventou, mas sem alma, sem encanto, porque a forma de sua reconstrução não se desfez, continua calcada estruturalmente na dissimulação, na violência e na desigualdade. A poesia nos serve, em poucas palavras, para nos confrontar com realidades que às vezes não alcançamos nas narrações discursivas do nosso dia a dia: “o dizer da poesia/é lugar, não lar” (p.147). Nossa visão estreita se confina ao lar, a amplidão do mundo é o lugar, lugar do qual se ocupa também a poesia, que abarca o sentimento universal.

Sobrevivemos cem anos após esse poema com muitos sobressaltos. E deixamos escapar das mãos as esperanças de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, forjadas um dia para garantia dos Direitos Fundamentais, inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Deixamos que um modo de produção perverso dominasse a tal ponto até esmagar a classe trabalhadora e as suas esperanças de sobrevivência e superação. Deixamos que essa forma de dominação egoísta chegasse ao ponto máximo de reprodução do capital sem a necessidade de valorização do trabalho humano; e chegamos a mais alta concentração de renda nas mão de uma minoria tão ínfima, tão poderosa e quase invisível. As consequências estão estampadas, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, com uma multidão de pobres e miseráveis vivendo nas piores condições de vida e a volta dos falsos profetas ao terreno salvacionista e messiânico, com suas teorias da conspiração.

Acatando o que nos diz a própria Arendt, em outra obra, “esperar das pessoas, que não têm a mínima noção do que é a res publica, a coisa pública, que se comportem de forma não violenta e argumentem racionalmente em assuntos de interesse não é realista nem razoável” (Crise da República. SP: Planeta do Brasil, p.141, 2024). Parece ter sido isso o que aconteceu no ato que reuniu milhares de pessoas na mais importante Avenida de São Paulo. Ali foram evidenciados os muitos sinais de uma degradação dos valores humanos, que se explicitam na capacidade de alguns poucos em manipular consciências e explorar a boa fé de muitos; sobretudo, o que existe dentro deles como “crença” em um Deus ex machina, que nos livraria do caos: a crença de que a extrema direita, com os seus embustes, nos salvará fazendo a aliança da política com a religião. A insinuação de um Estado Teocrático é perigosa e deletéria, afronta os princípios democráticos; além de ser sinal de regressão às lutas religiosas, que marcaram séculos de trevas e sofrimentos à humanidade.

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“É tarde, é tarde demais”, mas não é o fim! Esse grito é um alerta de que estamos à beira de um abismo. Parodiando Cartola, “abismo cavado com nossos pés”! Eles mentem, eles nos alarmam, eles espalham a cizânia. Não são fantasmas de papel ou internet: são reais, estão nas ruas, incrustados nos poderes da república, têm CPF ou CNPJ, mas não têm comedimento!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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