Crônicas do Cotidiano: O engodo da imparcialidade

As catástrofes não trazem somente a revolta da natureza, a morte, o sofrimento, a fome, o pânico e a incerteza. Trazem, também, a sordidez, a violência, o preconceito, a mentira e a ambição dos que pensam tirar partido sobre a situação e o sofrimento alheios. Embora tudo isso seja muito para o momento, as coisas não ficam por aí. A mídia, na sua diversidade de meios de comunicação, tem demostrado o seu lado iníquo com desdobramentos no comportamento das massas que alimenta através de seus formadores de opinião. As tragédias e as políticas públicas que as evitam, mitigam ou as sanam costumam suscitar disputas de interesses diversos, que se refletem em exigências, vontades ou domínio dos financiadores dos meios de comunicação, que os levam a traçar estratégias mais cômodas de disfarçar essas intromissões, evocando a tal “imparcialidade jornalística”. A mídia brasileira costuma não explicitar o seu lado. Não precisaria ser alinhada, bastaria ser crítica!

Em 1914, Walter Williams, fundador da Escola de Jornalismo da Universidade de Missouri, deu a conhecer o “Credo do Jornalista”: “Creio na profissão do Jornalismo;/ Creio que o jornal público é um dever público; em que todos com ele relacionados, na medida plena de suas responsabilidades, são fiéis depositários da confiança do público; e que a aceitação de um serviço menor que o serviço público é uma traição deste dever;/ Creio que pensamento e expressão clara, exatidão e imparcialidade são fundamentais para o bom jornalismo;/ Creio que um jornalista deve escrever somente o que considera com convicção ser verdadeiro…” (acesso ao texto completo na Wikipédia). Ao proferir este credo ante a cobertura da mídia brasileira nos atuais acontecimentos dá pena e até nojo. Tomando como exemplo a Economia, vozes agourentas, em todos os espaços noticiosos, tentam emplacar o negativismo a tudo que possa ser auspicioso aos menos favorecidos. Qualquer ação política governamental para superação das desigualdades gera contrariedade ao pensamento neoliberal, que prega o Estado mínimo e o corte de gastos. Sem dar espaço ao contraditório, nem revelar o seu lado, por insistência, quer tornar a sua versão única e verdadeira.

Esse tipo de ação se manifesta, claramente, na cobertura da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. O primeiro momento foi de comoção e mobilização nacional para socorrer as vítimas e todos, exceto a mídia de internet (com posicionamentos variados), voltaram-se para as doações e o voluntariado, além do factual. Passado esse momento, vai sobressaindo a força midiática de cada veículo, que assume o seu posicionamento ideológico, próprio e camuflado, que no jornalismo é chamado de “filosofia da empresa de comunicação” e começa a destoar daquele credo reproduzido acima. A montagem das imagens, a apresentação trabalhada dos conteúdos e matérias nos levam à interesses diversionistas, vindos à tona somente se fizermos uma exegese. Como, sem dados precisos, afirmar o comprometimento da politica econômica do governo somente porque este cumpre o que está escrito na Constituição da República: que a União existe, também, para socorrer os entes federados em caso de necessidade e deve coordenar esforços nos modos que a lei lhe faculta? Por que dar privilégio de voz a “cadáveres políticos” e a ventríloquos do mercado que surfam no vácuo de verdades consistentes? Por que descer ao nível do “tarô” para impor versões que qualificam pejorativamente uma ação como “jogada político-partidária”? Só “jornalistas imparciais” não sabem que tudo o que se faz numa sociedade, até no que se refere aos instintos e aos desejos, é política, e tanto na política quanto no jornalismo não existe imparcialidade. É por isso que só se faz política com cidadania, classes sociais definidas, movimentos sociais e partidos políticos, e todos têm lado; no jornalismo há patrões e interesses garantidos pela “liberdade de expressão”. Na política há lideranças, que se diferenciam nas suas práticas. Na mídia, meios dão voz aos grupos de seus interesses, colocando sobre o rosto o véu da “imparcialidade jornalística” sem revelar o seu lado, daí o engodo, a hipocrisia! Parafraseando Hannah Arendt, confiamos nas palavras quando temos a certeza de que a função das mesmas é revelar e não esconder!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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