Início » Diversidade » Da boneca negada à criação da própria marca: indígena empreende para apoiar aldeia onde nasceu
Da boneca negada à criação da própria marca: indígena empreende para apoiar aldeia onde nasceu
Luakam e a neta Anaty, que deu nome à marca das bonecas indígenas (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Compartilhe:
28 de abril de 2021
Alessandra Leite – Da Revista Cenarium
MANAUS – A artista indígena Luakam Anambé, de 52 anos, Luakam – noite que brilha – cujo significado do nome em Tupi Guarani prenuncia o destino de luz, conta em entrevista nesta quarta-feira, 28, detalhes sobre os mais de 40 anos de superação, após ter o sonho negado de ter uma boneca, aos oito anos de idade, em uma cidadezinha no interior do Pará, até a criação da própria marca de bonecas.
Luakam detalha como tem realizado projetos que pretendem levar a possibilidade de sonhos realizados também às meninas de aldeia, localizada na comunidade de Piquiateua, no interior de Viseu, no Pará. Em abril de 2020, a artista tinha a intenção de vender cem bonecas em uma feira temática no Rio de Janeiro, onde vive atualmente, quando foi surpreendida pelo cancelamento do evento devido à pandemia de Covid-19 que acabara de chegar ao Brasil.
PUBLICIDADE
A artista conta que havia investido toda a sua pouca economia na confecção das cem bonecas, ficando sem dinheiro até para comprar comida. “Teve dia que eu, minha filha e minha neta fomos dormir sem ter o que comer. Foi desesperador. Mas um dia minha neta fez um vídeo da produção das bonecas e postou nas redes sociais, quando o inesperado aconteceu: somente uma organização em Brasília comprou 200 bonecas de uma só vez. O dobro do que pensávamos vender na feira”, relembra Anambé.
Recursos na pandemia
Com o recurso da venda das bonecas durante toda a pandemia, quando ela e a filha aprenderam a conduzir os negócios via internet, Luakam conseguiu comprar um terreno em Viseu, local onde a obra da sede da marca será iniciada no próximo mês de julho.
“Dia 11 de maio agora estou saindo do Rio de Janeiro e vou passar duas semanas, entre Belém e minha aldeia Anambé, nas margens do Moju. Por meio da associação de lá, nós vamos criar um projeto para a aldeia. Hoje, 5% da renda de cada boneca vendida, a gente deposita em uma conta separada para a construção da nossa sede”, conta a indígena.
De acordo com Luakam, enquanto a sede do projeto não fica pronta, uma sala foi cedida para que as meninas da comunidade sejam recebidas. “Temos distribuição de cestas básicas desde o ano passado. Fazemos pequenas ajudas com remédios e exames, quando as pessoas da nossa comunidade precisam com urgência e não conseguem no sistema de saúde”, relata.
Com previsão de ser inaugurada em dezembro de 2021, a sede da marca da artista indígena já conta com parceiros tanto na iniciativa privada quanto no poder público. “Nesta viagem agora estou levando o projeto para dar entrada na prefeitura de Viseu. Estamos em um momento de buscar parcerias”, disse.
História de superação
Aos oito anos de idade, Luakam, cujo nome de batismo é Maria do Socorro Borges, viu uma boneca pela primeira vez na vida, enquanto acompanhava a “patroa”, em uma feira. Inocente, perguntou à mulher para quem trabalhava na casa, se ela poderia comprar a boneca para ela brincar. Recebeu um não como resposta. Ela precisava limpar a casa e cuidar de um bebê de quatro meses.
Foi trabalhar na casa daqueles fazendeiros, porque a mãe não tinha condições de criar 11 filhos. “Os anos se passaram e eu nunca esqueci aquela boneca. Minha vontade gritava dentro do peito, porque eu queria decolar, mas, em Viseu, eu sabia que não iria conseguir. Pensava que precisava ir para o Rio de Janeiro ou São Paulo”, conta a artista e hoje empreendedora, Luakam Anambé.
O sonho ficou guardado no coração, com a certeza, segundo Luakam, de que “a hora iria chegar”. Durante muitos anos trabalhou como empregada doméstica para sustentar os filhos. Separou-se aos 19 anos, de um casamento que foi obrigada a aceitar aos 14, e decidiu que precisava fazer algo para mudar o seu destino.
Um dia, voltando do trabalho, parou em frente a um ateliê e ficou olhando para dentro, curiosa por saber como aquelas mulheres trabalhavam. Pediu para fazer um teste e ouviu da dona o questionamento “se índio sabia costurar”.
Primeiro trabalho
Luakam, que havia aprendido a costurar sozinha na máquina emprestada de uma amiga, surpreendeu a proprietária do estabelecimento e começou a trabalhar no dia seguinte. Fez biquínis, vestidos e todo tipo de roupa, mas ainda faltava algo: a boneca. “Eu escutava essa voz dentro de mim, para eu não desistir, porque a hora ia chegar. Chegaria um tempo em que meu carro-chefe seria a boneca e eu iria sobreviver e manter a minha família dessa forma”, relembra.
Quando a neta Anaty, que significa “menina” em Tupi Guarani, nasceu, em 2013, Luakam criou a sua marca com o nome dela, vestida com roupas e pinturas em alusão ao povo Anambé.
A criança indígena que teve a infância roubada pelo trabalho e fora proibida de brincar, hoje tem a chance, criada por ela própria, de mudar a vida de tantas outras meninas. “Eu nunca parei de pensar naquela boneca. Pensei que o nosso limite seria o céu e ainda penso assim até hoje. Sabia que um dia cresceria e teria condições de fazer a minha própria boneca”, relata.
Livro infantojuvenil conta a história da artista
A história de Luakam e a boneca Anaty foi transformada em um livro voltado para crianças, pelas mãos da escritora mineira Nádia Afonso. Com lançamento previsto para o próximo dia 10 de maio, a obra infantojuvenil está em pré-venda no site da Editora Cria e terá 5% do valor da venda de cada livro revertidos para a construção da sede da marca no interior do Pará.
“O livro Luakam e a boneca Anaty conta a história da minha vida, desde que vi uma boneca pela primeira vez e não pude comprar, o percurso que fiz do Pará até o Rio de Janeiro, as dificuldades e todo esse processo de superação”, diz a artista.
O livro pode ser adquirido tanto no site da editora quanto na página da boneca Anaty. Segundo Luakam, a obra irá em breve ser comercializada na Itália, por meio de uma parceria com a editora Cria. “Acredito que vamos, com muita luta, chegar além do que imaginamos. Algumas situações não podem esperar e nós estamos fazendo tudo para arrecadar o valor necessário para amparar nossa comunidade”, afirma a artista, que deverá ter outras obras inspiradas em sua história em breve, desta vez para o público adulto.
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.
Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.
Cookies Estritamente Necessários
O cookie estritamente necessário deve estar ativado o tempo todo para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará habilitar ou desabilitar os cookies novamente.