Da creche à pré-escola: atendimento universal está atrasado a mais de três décadas no Brasil

Mais de 650 mil crianças brasileiras com até cinco anos estão fora de creches ou pré-escolas, segundo o último Censo Escolar (Prefeitura de Canoas/Reprodução)
Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – Por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), as creches e pré-escolas brasileiras não podem mais alegar a falta de vagas como obstáculo para a realização de matrículas de crianças de zero a cinco anos. O direito fundamental para a formação dos cidadãos está previsto na Constituição Federal de 1988, mas, na prática, a realidade é de um atraso de mais de 30 anos no cumprimento desta garantia.

Foi preciso que a Justiça agisse para tornar o atendimento universal, como promete a lei maior do País. A decisão, considerada histórica, além de abrir caminho para o reparo de um enorme retrocesso, destravou 15 mil ações judiciais de pais que processaram a administração pública de cidades e unidades federativas por não aceitarem seus filhos em salas de aulas, alegando falta de espaço, pessoal e orçamento suficientes para prestar o serviço básico, que é dever do Estado

“Não é permitido, ao poder público, permanecer inerte, nem reduzir o espectro de proteção do direito fundamental que estamos a examinar, tão pouco é tolerável, a meu juízo, que se estabeleçam obstáculos à construção de um ambiente de amplitude da Educação”, disse a ministra e presidente da suprema Corte, Rosa Weber.

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Creches e pré-escolas brasileiras não podem mais alegar a falta de vagas como obstáculo para a realização de matrículas (Agência Senado/Reprodução)

Três décadas de atraso

Mais de 650 mil crianças brasileiras com até cinco anos estão fora de creches e pré-escolas, segundo o último Censo Escolar realizado pelo governo federal. Entre 2019 e 2021, as matrículas da educação infantil caíram 7,3% e o acesso às creches despencou ainda mais: 9%.

São 34 anos de atraso na avaliação do representante jurídico da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, Guilherme Amorim. “Isso inviabiliza que as mães tenham condições de estar no mercado de trabalho. Como nós sabemos, há um matriarcado brasileiro. Muitas famílias dependem dos trabalhos das mães para sobreviver”, disse Amorim em entrevista à REVISTA CENARIUM

“A Constituição Federal, completa, agora, no dia 5 de outubro, 34 anos em vigor. Nós tivemos tempo mais do que suficiente para nos adaptarmos a esta realidade institucional (…) e o Supremo Tribunal Federal deixou muito claro que é preciso executar o Plano Nacional de Educação [PNE] que está em vigor; é a lei nacional que está em vigor”, acrescentou o especialista.

Representante jurídico da Fundação Abrinq, Guilherme Amorim critica o retrocesso da educação brasileira (Frame de entrevista para a REVISTA CENARIUM)

Prioridades

Para, de fato, universalizar o acesso, é preciso criar, imediatamente, 8,4 milhões de vagas em creches e escolas públicas; um impacto financeiro que, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), chega perto de R$ 120 bilhões.

Amorim pondera que não se trata, absolutamente, de recursos ou de falta de orçamento. “A própria aprovação recente que o Congresso Nacional fez, às pressas, do Auxílio Brasil, de mais de R$ 45 bilhões de reais, demonstra que o Brasil tem recursos. É uma questão de eleger prioridades”, destaca o advogado. 

Muito além das vagas

Entretanto, esta é uma discussão que vai muito além da abertura de vagas, como explica a mestre em Educação, Lilianny Oliveira Costa, à reportagem. “Como é que está a acessibilidade das escolas?”, questiona ela.

“Nós sabemos que existem escolas públicas com condições precárias, onde nem banheiro tem. Como é que fica isso? Como é que fica a alimentação das crianças? Como é que fica a biblioteca? Essa escola tem água tratada, tem pátio, saneamento básico, banda larga, laboratório?  E, principalmente, ela tem uma gestão que possa acompanhar todo esse processo de uma visão longitudinal [comprometimento a longo prazo] do desenvolvimento da criança para a formação na sociedade?”, acrescenta a especialista às perguntas pertinentes acerca do tema.

“É algo que tem que ser estudado, a educação básica como um todo, desde o início ao ensino médio, porque é o que vai envolver tempos e espaços de formação (…) é preciso pensar em como é que vai se dar esse acompanhamento, as distorções idade-série que existem, as expectativas de aprendizagem, se os alunos estão sendo alcançados ou não, além da infraestrutura do ambiente, por exemplo”, ressalta Costa. 

Mestre em Educação, Lilianny Oliveira Costa propõe uma discussão humanizada que vai além da abertura de novas vagas e o impacto orçamentário (Reprodução/Acervo Pessoal)

Aproveitamento escolar

A especialista leva em conta, ainda, a comparação entre os índices de domínio dos estudantes, em determinados campos de ensino, para embasar a ideia de que é preciso um olhar muito mais apurado quanto à qualidade do serviço ofertado, como a garantia de um direito fundamental. 

“Uma criança no Amazonas, por exemplo, tem 57% de aproveitamento em língua portuguesa e, 43%, em matemática, mas quando vamos ao Estado vizinho, Rondônia, os índices são de 56% e 47% [nas mesmas disciplinas]. Então, Amazonas e Rondônia, como parte do Norte, estão bem equiparados. E, aí, a gente tem que pensar numa política de permanência, pois quando se chega ao ensino médio, a proficiência está em 32% em português e 5% em matemática (…) Se havia em torno de 40% no 5º ano, entregando alunos com 5% de aprendizado para ensino médio, onde está o acompanhamento?” , alertou.

Guilherme Amorim, da Fundação Abrinq, defende a importância do acesso à escola desde os primeiros anos de vida. “As pessoas pensam: puxa, mas crianças de zero, dois, três anos têm algum aproveitamento estudando em uma creche? É evidente que sim”, exclamou. 

“Todo o primeiro aspecto de sociabilidade começa aparecer nesta fase. Estar no ambiente adequado, com acolhimento, com metodologia que desenvolva estes primeiros sinais da criança é extremamente necessário para que ela tenha um desenrolar da sua sociabilidade, da sua aprendizagem, da sua cognição adequada para as etapas seguintes”, defendeu. 

Mais que um direito

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, diz o artigo 205 da Constituição Federal. Na sequência, a Carta Magna elenca princípios como a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. 

Por isso, Lilianny Costa diz que é essencial pensar na educação infantil como fator transformador. “Pensando nesse contexto da Constituição, eu tenho uma pessoa, não apenas uma criança. É uma pessoa em desenvolvimento. E, na educação infantil, eu vou formar seres humanos desde a sua base, que é o início do desenvolvimento do indivíduo na sociedade”, disse a mestre em Educação. 

Visão humanizada da qual compartilha Amorim, ele lembra como todos os brasileiros têm poder para tornar a universalização uma realidade ainda mais palpável, afim de excluir ou, pelo menos, diminuir a evasão e a falta de acesso. “Precisamos, em primeiro lugar, de mobilização da sociedade civil e, em segundo, de planejamento do poder público (…) Deve ter orçamento dedicado à ação estatal planejada. Ao mesmo tempo a sociedade precisa cobrar que os prefeitos se organizem para que as vagas em creches sejam efetivamente disponibilizadas e que eles prestem contas à população sobre isso”, concluiu o advogado da Abrinq.

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